Opinião e Análise

Cássio Casagrande

Achei surpreendente a grande profusão de eventos acadêmicos, por todo o país, organizados por esses dias para celebrar e debater os 30 anos da Constituição de 1988. Pareceu-me um sinal de vitalidade de nossa Carta Cidadã.
Eu mesmo estava muito animado, pois organizamos um seminário em nossa centenária Faculdade de Direito da UFF, em Niterói, para não deixar a data passar em branco. Nesse clima de festejo, estive recordando, na semana anterior, que fiz meus estudos jurídicos na graduação justamente enquanto a Assembleia Nacional Constituinte desenvolvia os seus trabalhos. Entrei na Faculdade de Direito de Curitiba com a Constituição de 1967 e saí com a de 1988.
Lembrei do grande entusiasmo e esperança de então. Jamais poderia imaginar, naquela época, que trinta anos depois estaria eu na condição de professor de direito constitucional na UFF, celebrando essa efeméride e dividindo a mesma mesa de debates com mestres do talante de Guilherme Peña de Moraes e Gustavo Sampaio. Eu estava realmente empolgado com o evento. Mas logo recebi uma ducha de água fria.
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Encontrei um brilhante aluno no pátio da faculdade e perguntei se ele compareceria ao seminário. Ele me olhou com um olhar melancólico e tristonho, um pouco desacorçoado, e me disse simplesmente: “Professor, não sei se chegaremos a comemorar os 40 anos da Constituição”. “Por que?”, redargui. O aluno me respondeu: “Sou o único do mundo do direito lá em casa; minha família me pede para explicar as decisões do STF e eu não consigo. E, para dizer a verdade, muita coisa para mim na Constituição já não faz mais sentido”.
<blockquote class="jota-article__eye">Percebi, ali, um certo abismo geracional. Compreendi que enquanto minha geração está olhando para o retrovisor, tentando entender tudo que se passou em nossa ordem político-constitucional nos últimos 30 anos (e concluindo, de certa forma, que apesar dos pesares o saldo foi positivo), a geração dos atuais estudantes de direito está mais preocupada em entender se essa Constituição vai sobreviver aos próximos dez anos.</blockquote>
E, ao que me parece, muitos estão bastante pessimistas. Talvez eles tenham razão. Afinal, a Constituição não é obra da geração deles, que enfrentam novos desafios, mas sim da nossa, que a fizemos para superar impasses de outrora.
Pensei, por isso, no famoso debate epistolar entre Thomas Jefferson e James Madison, entre 1789/90. Eles discutiam a melhor maneira de adaptar uma constituição às exigências do futuro, pois sabiam que novas e imprevistas mudanças sociais demandariam alterações constitucionais. Jefferson, autor da Declaração de Independência, mas que não participara da Convenção da Filadélfia porque estava servindo como embaixador dos EUA na França, criticava a fórmula adotada em 1787, defendida por Madison, que permitia “emendar” a Constituição mediante um procedimento formal mais rígido do que aquele estabelecido para a aprovação de leis ordinárias. Jefferson acreditava que uma Constituição inteiramente nova deveria ser feita a cada geração (que calculava em 25 anos), pois era da opinião de que “os mortos não devem governar os vivos; cada geração só pode obrigar-se a si mesma, mas não aos que virão”.
É claro que triunfou no mundo ocidental a fórmula madisoniana, inclusive aqui. Mas então, se afinal, a Constituição pode ser alterada até com relativa facilidade no Brasil (foram 105 emendas nestes 30 anos), uma vez que os governos presidenciais têm conseguido obter amplas coalizões (embora a custoso preço), que razão haveria para pessimismo do meu aluno? Se, como ele diz, “muita coisa na Constituição não faz sentido”, bastaria emendá-la (estou supondo que ele não está inconformado com as cláusulas pétreas, é claro). Acho, portanto, que esse não é um verdadeiro motivo de desalento para a geração emergente.
<blockquote class="jota-article__eye">Porém, quando esta nova geração de estudantes de direito não consegue entender e explicar para sua família as decisões do STF, penso que, de fato, temos, nós e eles, motivos para temer pelo futuro da Constituição.</blockquote>
Ou seja, o problema não é da Constituição em si, da Constituição como norma, como “folha de papel”, mas das instituições encarregadas de zelar por ela, dos “fatores reais de poder”, para usar os conceitos consagrados de Ferdinand Lassalle. O que, no fim das contas, também é um problema constitucional.
Neste particular, o STF está falhando miseravelmente. Decisões são tomadas por esta Corte contra a letra da Constituição ao frágil (e eu diria absurdo) argumento do “ativismo iluminista”. A pretexto de exercer o controle de constitucionalidade das leis, criam-se, por meio da repercussão geral, “teses” que não passam de verdadeiros ucasses, com características de norma de caráter geral, como bem observado pelo professor Lenio Streck, como se o STF fosse a terceira câmara do parlamento. Vulgariza-se a “função contramajoritária” do STF ao ponto de derruição do princípio da presunção da constitucionalidade das leis.
Por meio de verdadeiros canetaços, decisões monocráticas liminares suspendem leis votadas por 513 Deputados e 81 Senadores e desaparecem misteriosamente da pauta por longos anos. Fundamentos jurídicos são substituídos por vagas considerações de ordem econômica, como se coubesse ao judiciário fazer esse tipo de opção política (Oliver Wendell Holmes, tido por alguns como, dentre todos, o maior juiz da história da Suprema Corte dos EUA, já alertara contra essa perigosa tentação em seu famoso voto vencido no caso Lochner v. New York, de 1905).
<blockquote class="jota-article__eye">Ministros do STF decidem questões que afetam a vida de milhões de cidadãos com base em palpites infundados, preconceitos manifestos ou mera opinião pessoal, disfarçada de “consequenciachismo”, como diz o professor Conrado Hübner Mendes.</blockquote>
Deixam-se suas excelências enredarem-se em guerras partidárias; dividem-se em “bancadas” e prestam declarações polêmicas e controversas à imprensa ou em eventos públicos, esquecendo-se do recato inerente à condição de magistrados constitucionais.
Alguns acreditam até que, em razão de seus notáveis conhecimentos jurídicos, devem obrigatoriamente contribuir para o debate político sobre o que é o melhor para o país. Paradoxalmente, os mesmos sábios do Olimpo não se dão ao respeito e parece que em algumas sessões estão perto das vias de fato, num espetáculo público lastimável. A corte que deveria zelar pela guarda da Constituição desmoraliza-se dia a dia. Realmente, aquele meu aluno tem razão. Alguma coisa está fora da ordem. Fora da ordem constitucional.
A essa altura em que estamos, já parece evidente o terrível erro da Emenda Constitucional 45, que promoveu uma concentração absoluta e insana de poderes no STF, esvaziando as instâncias ordinárias do Poder Judiciário, permitindo que os juízes constitucionais cassem monocratica e autocraticamente, via reclamação, decisões nas mais distantes comarcas do país, em julgamentos sumários. Nunca nenhum país esteve tão próximo a semelhante despotismo judicial.
E o pior é que, a depender dos resultados das urnas, não poderemos sequer cogitar de uma reforma do sistema judicial, pois, embora necessária, talvez não seja oportuna, agora. Porque, todos o sabem, há certos políticos autoritários que estão à espreita, ávidos por uma oportunidade para solapar a independência do poder judiciário. Precisamos de uma reforma para democratizar a jurisdição constitucional, não para suprimi-la.
Já se falou, abertamente até, em alterar a composição do STF, para acrescer dez ministros ao colegiado, numa abominável reprodução do que se deu no AI-2, como recentemente recordado no excelente e imprescindível livro “Tanques e Togas”, de Felipe Recondo. Viu-se, há pouco, também, que um graduado general, antes de uma sessão em que o STF julgaria delicada questão com repercussão política, lançou advertência ao tribunal, dizendo que as Forças Armadas estavam atentas à decisão, numa manifestação clara de intimidação ao poder judiciário. E, pior, manifestantes saem às ruas pedindo intervenção militar, oferecendo-se como massa de manobra barata para aventuras de políticos que questionam a lisura do processo eleitoral.
Em razão dessa inquietação dos apologetas das baionetas, pareceu-me extremamente infeliz a decisão do presidente Dias Toffoli de escolher um general da reserva como conselheiro, ordenança, ou qual seja lá qual for a função que esse assessor ocupa na sua administração. Qual é o efeito simbólico disto? Não por coincidência, depois de nomear o militar para seu gabinete, o presidente da corte comparece a um evento na tradicionalíssima Faculdade de Direito do Largo São Francisco, onde declara que <a href="https://www.jota.info/stf/do-supremo/toffoli-golpe-64-movimento-01102018" target="_blank" rel="noopener">o que houve em 1964 foi um “movimento”, nem golpe, nem revolução</a>. Ora, ora, parece que o presidente do STF já está recebendo os bons conselhos do general.
O pior e mais absurdo de tudo é que Dias Toffoli, para justificar a bizarria da sua opinião, invocou a autoridade do historiador carioca Daniel Aarão Reis. Ocorre que este ilustre e sapientíssimo professor da Faculdade de História da nossa UFF jamais sustentou esta opinião, digamos, estranha. Quem conhece minimamente a obra de Aarão Reis sabe que ele sempre afirmou, de forma categórica e enfática, que o que houve em 1964 foi um golpe militar. Toffoli, ao que parece, citou o autor sem ler, para tratar de tão grave e delicado assunto. O próprio Aarão Reis, em nota, desmentiu fosse o autor da “teoria” sustentada por Toffoli, deixando o presidente do STF em maus lençóis, numa situação bastante embaraçosa, que até agora não foi esclarecida devidamente pelo presidente da corte.
<blockquote class="jota-article__eye">Permanece, pois, a obscura questão: por que, afinal das contas, Toffoli nomeou o general?</blockquote>
Por que essa união das canetas e das baionetas? Pode-se imaginar que, talvez, Toffoli pretendeu “blindar” o tribunal, ante a iminência de um governo civil autoritário, tutelado pelos homens de coturno. Se foi essa a intenção, ou seja, assegurar preventivamente uma interlocução entre a caserna e a corte, no mínimo Toffoli antecipou desnecessariamente sua fraqueza, revelando seus medos aos homens da espada. Uma estratégia bastante duvidosa, que parece ter sido engendrada juntamente com outras cabeças.
E será nesse ritmo, tudo indica, que, “la nave va”. A Constituição de 1988, ao que parece, viverá nos próximos anos sob esse dilema, ameaçada pelo despotismo das canetas e das baionetas. E, num cenário de terrível pesadelo, pela sua união. A nova geração dos alunos de direito tem, de fato, muito a temer. Como diz o meu dileto e douto colega da UFF Gustavo Sampaio, em face de tamanhas adversidades, temos que comemorar a cada novo dia o fato da Constituição Cidadã estar, ainda, em vigor.

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JOTA

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