Opinião e Análise

Cássio Casagrande

Com as vacinas no horizonte, podemos começar a sonhar com o fim da pandemia, a despeito da incompetência e do descaso do governo federal. Professores e alunos de Direito retomaremos finalmente as atividades presenciais nas universidades, em algum momento de 2021, assim esperamos.
E quando tudo voltar ao “velho normal”, será que nossas vivências em salas de aula serão como eram antes da Covid-19? Em que medida a experiência do ensino online e do distanciamento social terá contribuído (ou não) para a melhoria do ensino e da relação aluno-professor?
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Uma opinião que parece unânime entre meus colegas professores é a de que o ensino online ou à distância não possui a mesma eficácia do ensino presencial. Há um grande “empobrecimento” da relação “mestre-aprendiz”. Pelo que sinto da estudantada, eles têm opinião ainda mais desfavorável e é de se entendê-la, pois uma das melhores experiências no tempo de faculdade é a construção de relações sociais e de reconhecimento da alteridade típica das salas de aula, cada vez mais plurais graças às políticas de integração social e interegional do sistema universitário brasileiro nas duas últimas décadas.
Para mim, pessoalmente, as aulas online são muito frustrantes. Uma das funções mais importantes do professor em sala de aula é a descoberta de talentos e vocações. Identificar alunos e alunas com potencialidades especiais e ajudá-los a desenvolver essas habilidades, incentivando-os e os direcionando a carreiras jurídicas e acadêmicas é sem dúvida uma das missões mais importantes do magistério na área do Direito.
Nada é mais gratificante na atividade docente do que formar “discípulos”, ou seja, perceber que os alunos aproveitam e incorporam o seu modo de ver o mundo (inclusive para criticá-lo), reverenciando suas lições. Além de gratificante (e admitamos, reconfortante para a vaidade intelectual), a formação de “pupilos” é essencial para perpetuação e estabilidade das correntes doutrinárias no Direito – mas, também, paradoxalmente, para a própria renovação da doutrina jurídica, já que o pensamento crítico nasce da tensão dialética inerente à relação mestre-discípulo. A “invisibilidade” do alunado por trás das telas de computador torna essa missão muito difícil.
Outra barreira criada pelo ensino online é o que eu chamaria de “pasteurização” das aulas, ou seja, a transformação de um ambiente vivo e imprevisível como a sala de aula em uma bolha controlada – situação que se agrava no caso dos professores que simplesmente gravaram uma série de palestras sem público e as colocaram à disposição dos alunos. Recusei-me a fazer isso, mantive na Universidade Federal Fluminense (UFF) as aulas síncronas – e mesmo assim percebi uma redução drástica de interação entre aluno e professor.
Costumo dizer que o trabalho do professor é muito semelhante ao de um ator de teatro, e eu diria em especial de um praticante da improvisação típica dos artistas de “stand-up comedy”. Quando comecei a dar aulas de Direito Constitucional na UFF, montei um roteiro, levava uma série de anotações e me aferrava bastante àquele itinerário. Logo, porém, percebi que os momentos mais interessantes da aula acabavam sendo aqueles em que eu desviava do caminho traçado, instigado por indagações, curiosidades e provocações dos alunos.
A certa altura, impus-me o seguinte desafio: eu daria as aulas sem consultar nenhuma nota. Passei a fazer uma breve revisão dos pontos minutos antes do início das aulas e deixei que os alunos determinassem o rumo da trama. As aulas expositivas acabaram se transformando em aulas reflexivas, e apesar de naturalmente esquecer um ou outro tópico que deveria ser comentado, no geral houve uma participação mais ativa e um enriquecimento do conteúdo. Nunca uma aula foi igual a outra, o que é difícil de acontecer no ambiente asséptico do ensino online, onde a tendência da repetição e da falta de criatividade acaba se impondo.
<blockquote class="jota-article__eye">No ensino à distância, é muito raro nos depararmos com aqueles acontecimentos inesperados típicos das salas de aula, que permitem ao professor o improviso, as blagues, as boutades, as sacadas, todas típicas dos velhos canastrões do teatro que entretinham o público com os seus cacos e tiradas.</blockquote>
Ano passado, quando eu dava uma aula de Direito na solene “Sala Nelson Hungria”, o som de um funk pesadão em último volume invadiu o recinto. Um sujeito lavava um carro na rua ao lado e para se distrair mandou ver nas caixas de som do automóvel. Como conseguia vê-lo do segundo andar, fui até a janela, assobiei, balancei os braços e pedi gentilmente que desligasse o som. Ele atendeu e o incidente gerou um debate sobre “colisão de direitos”. Aliás, essa empresa de lavagem de automóveis ao lado da Faculdade, em Niterói, se chama “Lava Jato dos Amigos”, nome comercial que por si só poderia render também uma aula interessante.
Bem, apesar dessas perdas do ensino “olho a olho”, não podemos também ser inclementes com os métodos telemáticos de que hoje dispomos. A UFF celebrou um convênio com a Google para utilização da ferramenta “Classroom” e ela é bastante útil para compartilhamento de material didático, informações rápidas em sistema de “mural”, elaboração de provas, trabalhos em grupo e registro de atividades acadêmicas. A imposição das aulas à distância obrigou os professores a sair da sua zona de conforto para repensar novos métodos de ensino. De uma forma ou outra me vi obrigado a reformatar meus cursos e a experiência foi bastante positiva. Além disso, rever suas próprias aulas gravadas oportuniza um exercício de autocrítica que raramente fazíamos.
O ensino online também tem a vantagem de agregar alunos e palestrantes de outras cidades, regiões e países, o que não ocorreria com o ensino tradicional. Neste ano, ministrei uma disciplina no mestrado que contou com ouvintes de lugares como Brasília, Cascavel (PR) e Uberlândia, os quais enriqueceram muito a vida acadêmica. Aliás, o ensino à distância para aulas de mestrado acadêmico, com turmas pequenas entre 10 e 15 alunos, quando estes estão dispostos a mostrar suas caras e são instigados a participar ativamente das aulas, mostrou-se uma experiência altamente positiva, a despeito, repito, dos prejuízos causados pela inestimável perda de convivialidade.
A própria ideia da virtualidade nos desperta para novos experimentos didáticos e diferentes formas de avaliação.  Um professor que conheço desafiou os alunos a conceber uma “obra coletiva”, na qual todos vão agregando seus conhecimentos de uma disciplina, redigindo e corrigindo o texto em modo “wikipedia”.  No fim do semestre tive a ideia de propor um trabalho feito apenas em áudio, com a concepção e dinâmica dos “podcasts”. O resultado foi acima do esperado e empolgou a turma.
Enfim, os progressos do ensino online, indubitavelmente vantajosos, jamais substituirão o ensino presencial em salas de aula, método que, embora vetusto, se provou eficiente e dominante desde que as primeiras turmas de estudantes de direito foram formadas na Faculdade de Bolonha, lá nas lonjuras do Século XI.  A história nos ensina que as inovações duradouras não são aquelas que destroem as boas experiências do passado, mas, sim, as que as aperfeiçoam.
***
Esta é a última coluna de 2020. Aos leitores que me acompanharam aqui neste annus horribilis, agradeço a audiência e a companhia. Que tenhamos todos um Ano Novo de muita esperança!  “O Mundo Fora dos Autos” volta depois do recesso judiciário. Até lá!
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O episódio 47 do podcast Sem Precedentes analisa o julgamento do Supremo Tribunal Federal que decidiu pela inconstitucionalidade da reeleição dos presidentes do Congresso. Ouça:
https://youtu.be/o8E3sXtx7j0
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JOTA

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