Opinião e Análise

Cássio Casagrande

Entre 1933 e 1969, de Franklin Delano Roosevelt a Lyndon Johnson, o Partido Democrata ocupou sete mandatos presidenciais, com apenas um interlúdio do Partido Republicano durante os oito anos de Dwight Eisenhower. Esse longo período de trinta e seis anos de prevalência dos Democratas foi sustentando por programas keynesianos que incluíam o fortalecimento do poder de organização sindical da classe trabalhadora (uma das medidas do New Deal de FDR) e de coordenação econômica do governo federal (culminando na Great Society de Johnson).
Mas então veio a desconcertante década de 1960 e o encanto se quebrou. A aliança entre os Democratas e a classe trabalhadora, forjada nos longos anos Roosevelt, esbororou-se. Nos cinquenta anos seguintes depois da eleição de 1968, a política americana seria dominada pelo Partido Republicano, com breves e inconsistentes intervalos Democratas. De Richard Nixon para cá, foram oito mandatos “fortes” do Grand Old Party contra apenas cinco “fracos” dos seus tradicionais adversários liberais.
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Essa disparidade de força nas últimas cinco décadas pode ser observada na disputa pela influência sobre o judiciário: desde que o mesmo Nixon começou a fazer nomeações para a Suprema Corte, em 1969, sempre houve, nesses últimos cinquenta anos, uma maioria de ao menos cinco juízes conservadores indicados por presidentes Republicanos. Enquanto os presidentes Republicanos reinavam na Suprema Corte e reformavam a economia, Carter não se reelegeu diante do fiasco no Irã, Clinton passou um mandato inteiro enrolado com um ridículo processo de impeachment e Obama, apesar da bem sucedida aprovação da Affordable Care Act, não conseguiu reverter o predomínio conservador na Suprema Corte nem tampouco reorganizar as bases do seu partido de modo a reeleger um sucessor.
O que aconteceu para essa mudança radical na política americana? Essencialmente, uma enorme parcela da classe trabalhadora branca passou a votar no Partido Republicano a partir da virada dos anos 60/70. O experimentado jornalista David Paul Kuhn publicou um livro recentemente para tentar explicar o fenômeno: “The Hardhat Riot: Nixon, New York City and the Dawn of the White Working Class Revolution”, (A Insurreição dos Capacetes: Nixon, a Cidade de Nova Iorque e o Despertar da Revolução da Classe Trabalhadora Branca, em tradução livre), Oxford Press University, 2020.
Kuhn busca explicar o divórcio entre os trabalhadores brancos e o Partido Democrata a partir de um episódio pouco lembrado da história americana: um violento conflito de rua que explodiu no dia oito de maio de 1970 no coração de Nova Iorque, entre estudantes que protestavam contra a guerra do Vietnã e trabalhadores da construção civil que os espancaram, acusando-os de antipatriotas.
Esse foi o momento mais tenso do primeiro mandato de Nixon. O presidente havia no começo daquele mês anunciado a expansão das atividades militares para o Camboja, contrariando a expectativa de uma retirada do conflito no sudoeste asiático. Houve em consequência um recrudescimento dos protestos estudantis em diversas universidades e um deles terminou de forma trágica, em Michigan, quando integrantes da Guarda Nacional perderam o controle da situação e dispararam a esmo, matando quatro estudantes na Kent State University. Um deles era natural de Nova Iorque e estudantes dessa cidade convocaram uma marcha para homenageá-lo e para protestar contra a guerra e o governo Nixon.
O protesto era pacífico e estava concentrado na área de Wall Street e do Federal Hall, reunindo inicialmente cerca de dois mil estudantes. Na hora do almoço dezenas de trabalhadores da construção civil da área (muitos empregados nas obras das torres gêmeas do World Trade Center) se aproximaram para ver o que se passava. Alguns operários ficaram ultrajados quando estudantes queimaram uma bandeira dos EUA e desfraldaram outra do Vietcong. Os trabalhadores começaram a entoar coros de “USA, all the way” e “America, love it or leave it”.
Xingamentos mútuos se sucederam e não demorou para que o conflito descambasse para as vias de fato. Os trabalhadores partiram para a pancadaria, chutando e esmurrando quem tivesse cabelos compridos e roupas coloridas ou aparência hippie, incluindo transeuntes que nada tinham a ver com o protesto. A fileiras de um lado e de outro foram sendo engrossadas por partidários de ocasião. Em alguns minutos, cerca de vinte mil pessoas estavam envolvidas no conflito e a polícia não se empenhou muito em controlar a turba. O saldo foi de cem feridos, quarenta com lesões na cabeça e seis em estado grave. Milagrosamente ninguém morreu.
Depois desse dia, o presidente do sindicato da construção civil, Peter Brennan, convocou seguidas manifestações de rua, todas bem sucedidas, para ressaltar o apoio do povo americano aos “trabalhadores patriotas”. O protesto acabou se voltando contra o prefeito de Nova Iorque, John Lindsay, um republicano moderado com ambições presidenciais que apoiara a marcha estudantil. Nixon, aconselhado pelo sagaz assessor Pat Buchanam, farejou uma grande oportunidade: nas palavras de Kuhn, ele trocou os “blue bloods” pelos “blue collars”. Recebeu as lideranças do operariado da construção civil na Casa Branca com grande pompa, rendeu-lhes homenagens e nomeou Brennan Secretário do Trabalho.
Foi a partir desse momento que os Republicanos passaram a cortejar a classe trabalhadora branca e ressentida com a liderança do Partido Democrata, vista por ela como dominada por universitários bem nascidos, desacostumados a trabalhos manuais, demasiadamente esquerdista e universalista, orientada por pautas identitárias distantes da sua realidade, sobretudo daquela típica de Nova Iorque - católica, descendente de italianos e irlandeses, tradicionalmente conservadora. Não faltaram sindicalistas pelegos declaradamente anticomunistas para se deixar levar pelo canto da sereia.
Esse operariado ressentido e angustiado com a redução do emprego industrial foi o esteio essencial das eleições de Nixon (segundo mandato), Reagan, dos Bush e de Trump. Com o discurso da redução de impostos aos mais ricos e de políticas desregulatórias probusiness, defendidas como a melhor forma de aumentar o emprego e o salário dos mais pobres, o Partido Republicano tem se mantido altamente competitivo nas últimas décadas, porém uma hora a conta haveria de chegar. As administrações republicanas significaram também a proliferação de medidas antilabor, o enfraquecimento sindical, o arroxo do salário mínimo, a precarização do trabalho plataformizado e, enfim, a redução do poder de barganha e de compra da classe trabalhadora. A Covid apenas evidenciou essas debilidades do modelo probusiness diante de uma crise inesperada.
A promessa do sonho americano, versão republicana, está cada vez mais distante. Para manter um padrão mínimo de dignidade, os trabalhadores precisam de dois empregos e longas jornadas. Hipotecas imobiliárias a juros baixos foram substituídas por aluguéis caros, e colocar os filhos na universidade só é possível com custosos financiamentos bancários. A era de dominância do Grand Old Party das últimas cinco décadas deixa um gosto amargo para a classe operária americana.
É pela compreensão desses dramas do cotidiano que Biden pode vencer - e não pelas políticas identitárias que levaram ao grande divórcio do final dos anos 1960. Embora na gestão Obama, a aprovação do Affordable Care Act tenha sido um gesto de enorme importância na aproximação com os mais pobres, os Democratas, quando no poder, não conseguiram restabelecer contato orgânico com a base da classe trabalhadora, no sentido de desenvolver políticas laborais consistentes de longa duração como ocorreu na era FDR.
As alas tradicionais que pregam esse movimento reformista prolabor mais amplo, ligadas a Bernie Sanders, e as mais modernas que reivindicam um “Green New Deal”, lideradas pela jovem Deputada Alexandra Ocacio Cortez, não têm conseguido ocupar o mainstream do campo Democrata. A forma como as forças internas do Partido Democrata se reorganizarão para tentar resolver os problemas da classe trabalhadora será decisiva para o sucesso de um eventual governo Biden e para a própria vitalidade de sua agremiação em uma país cada vez mais dividido e tensionado.
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Episódio desta semana do ‘<a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/sem-precedentes" target="_blank" rel="noopener noreferrer">Sem Precedentes</a>‘, podcast sobre STF e Constituição, analisa a judicialização precoce da vacinação contra a Covid-19 no STF. Ouça:
https://www.youtube.com/watch?v=DQSxD_nC9uc&amp;feature=emb_title

FDR signs NLRA, July 6, 1935

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JOTA

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