Opinião e Análise

Cássio Casagrande

Encerrado o recesso de verão, começou nesta segunda-feira (3) o novo termo judiciário na Suprema Corte dos Estados Unidos, que deve prosseguir até junho próximo. O ano judicial que passou foi um dos mais tensos e controvertidos na história do tribunal, em razão da superação de precedentes consolidados, notadamente o caso Roe v. Wade, que assegurava a interrupção da gravidez como um direito constitucional das mulheres. Em Dobbs v. Jackson, a corte afastou a premissa de que o direito ao aborto estaria protegido pela Constituição federal, e remeteu a matéria aos legislativos estaduais. Estados mais conservadores já editaram, desde então, diversas leis criminalizando a prática, algumas das quais sequer contêm exceções para os casos de estupro ou incesto. A decisão causou ultraje em boa parte da opinião pública e a corte atravessou diversos meses protegida por altas cercas de metal, fato inédito em sua história.
A nova temporada da Suprema Corte começa com muitas novidades e a primeira delas foi a remoção das grades de contenção e a reabertura das sessões para o público, o que não ocorria desde princípios de 2020, em razão da pandemia. Pode-se dizer, pois, que o Chief Justice John Roberts se esforça por fazer o seu tribunal voltar à normalidade, após quase três anos de funcionamento atípico e sob escrutínio pesado da mídia e academia. O presidente certamente está de olho nas taxas de aprovação da corte pela opinião pública, que se encontram em seu nível histórico mais baixo, desde que tais pesquisas começaram a ser feitas no início dos anos 1970.
A outra grande mudança é quanto à própria composição da corte. A Justice <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/o-mundo-fora-dos-autos/ketanji-jackson-o-que-significa-suprema-corte-28022022">Ketanji Brown Jackson</a>, primeira mulher negra a ocupar a posição, nomeada por Biden no final do semestre passado, finalmente começa sua efetiva atividade judicante. E ela deu mostras já na primeira sessão de que participou, na manhã desta segunda-feira, de que não é uma juíza tímida, nem se deixa impressionar pelo noviciado. Durante a sustentação oral de uma causa de direito ambiental, relativa aos poderes da agência federal de regulação ambiental, Jackson fez observações bastante contundentes e incisivas ao advogado de uma das partes, que defendia a restrição da abrangência dos atos do governo na matéria. A presença de Ketanji Jackson pode aumentar o grau de simpatia do público com a corte, carente de figuras carismáticas desde os falecimentos dos juízes Antonin Scalia e Ruth Ginsburg.
A recuperação do prestígio da corte, no entanto, depende do essencial: suas decisões atualmente são vistas como “partidárias”, especialmente nos casos que impactam a opinião pública e que frequentemente têm sido decididos em linhas claramente ideológicas, com seis juízes indicados por republicanos de um lado e três juízes indicados por democratas de outro. E no que depender da pauta de casos já admitidos, a turbulência vai continuar e a imagem de “politização” tende apenas a se aprofundar.
O julgamento mais momentoso certamente será o que envolve as políticas de ações afirmativas, tidas como constitucionais desde os precedentes University of California v. Bakke, de 1978, e Grutter v. Bollinger, de 2003. Já está marcado para o dia 31 de outubro a arguição de casos que envolvem a Universidade Harvard (privada) e a Universidade da Carolina do Norte (pública). Analistas políticos e constitucionalistas dão como certo que os três juízes nomeados por Trump devem juntar-se a dois outros conservadores, Samuel Alito e Clarence Thomas, cuja posição contrária às ações afirmativas é conhecida, para declarar a inconstitucionalidade desta política em universidades públicas. A questão é saber se essa maioria também prevalecerá no caso das universidades privadas, pois isso implica em dar nova interpretação à Lei dos Direitos Civis, o que não parece tão simples. Se a corte decidir por derrubar por completo os precedentes Bake e Bollinger, haverá muita agitação e protestos em Washington, com impactos políticos evidentes na próxima eleição presidencial.
Também estão na pauta da Suprema Corte dois casos de direito eleitoral que podem aumentar a temperatura na casa e fora dela, os quais tratam do velho problema do “gerrymandering”, a manipulação dos distritos eleitorais pelos legislativos estaduais, cuja distorções podem favorecer os partidos que dominam essas assembleias. No mais aguardo deles, republicanos tentam aprovar uma controversa tese, denominada “independent legislature theory”, segundo a qual decisões legislativas nos estados sobre “redistricting” não seriam passíveis de revisão pelas cortes estaduais.  Caso chancelada pela Suprema Corte, isso significaria que o redesenho de distritos eleitorais não poderia ser questionado na Justiça, mesmo quando dele resultar insulamento e sub-representação de minorias, notadamente do eleitorado negro. A tese, caso acolhida, será denunciada como uma bomba política pelos democratas.
Outro tema sensível será apreciado em casos nos quais se aponta conflito entre liberdade religiosa e direitos de minorias sexuais. Em um deles, que já foi objeto de apreciação liminar, uma universidade denominacional judaica negou reconhecimento a uma associação de estudantes LGBT criada em seu campus, ao argumento de que a homossexualidade seria contrária aos seus preceitos fundacionais. A decisão provisória monocrática acolheu o pedido da universidade, mas foi baseada em questões processuais. No outro caso, um artista que desenha websites para casamentos negou-se a atender um casal do mesmo sexo, ao argumento de que esse tipo de união é contrária a suas convicções religiosas. A Suprema Corte já avaliou um caso semelhante em passado recente, em que um confeiteiro agiu da mesma forma, mas o caso foi decidido em favor deste apenas com base em questões procedimentais. É quase certo que desta vez o tribunal adentrará ao mérito e haverá muito barulho.
Por fim, a Suprema Corte acaba de admitir um caso trabalhista importantíssimo, em que se discute a possibilidade de responsabilização civil dos sindicatos decorrente de movimento grevista. No sistema atual, resguardado por um antigo precedente da própria corte, se um empregador, por exemplo, tem prejuízo em razão de uma greve (suponha-se, comida de um restaurante que estraga devido à paralisação dos seus trabalhadores), a questão somente pode ser tratada no âmbito da National Labor Relations Board, agência administrativa que adjudica administrativamente os conflitos trabalhistas coletivos. Se a Suprema Corte revogar o seu próprio precedente (San Diego Building Trades Council v. Garmon, de 1959), a decisão terá um impacto negativo enorme no movimento sindical, em momento no qual há um grande crescimento de greves nos EUA e em que o presidente Biden tenta aprovar uma lei (Pro-Act) no Congresso para dar mais poder aos sindicatos.
Tudo indica que a desconstrução da jurisprudência progressista deve continuar a todo vapor neste velho novo ano da Suprema Corte.

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JOTA

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