Opinião e Análise

Cássio Casagrande

A <a href="https://www.jota.info/legislativo/camara-aprova-projeto-que-cria-novo-marco-legal-para-garantias-no-pais-02062022">aprovação pela Câmara dos Deputados</a> de projeto de lei que põe fim à impenhorabilidade dos móveis de família (<a href="https://www.camara.leg.br/propostas-legislativas/2309053">PL 4188/21</a>), permitindo que sejam oferecidos como garantia para operações de crédito, tem suscitado opiniões que criticam a legislação vigente brasileira (<a href="http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8009.htm">Lei 8.009/90</a>) como sendo uma “jaboticaba”, só existente em nossas bandas. Não é bem assim.
Por exemplo: credores americanos podem executar o patrimônio imobiliário de devedores, incluindo a sua propriedade residencial? A resposta varia conforme o estado, já que esse tema é afeto à legislação estadual, mas de maneira geral pode-se dizer que, com a exceção das hipotecas (tal como ocorre no Brasil), as leis estaduais estabelecem limites à possibilidade de executar o “bem de família” para pagamento de dívidas (inviabilizando seu oferecimento em garantia). A propriedade familiar primária ("homestead") é entendida como aquela em que a família reside, porém há grandes diferenças quanto ao valor da propriedade que é protegido contra credores entre os diversos estados americanos.
Essa cláusula de proteção contra a impenhorabilidade de imóveis residenciais é conhecida como “homesteadd exemption” e surgiu no direito americano no século 10, mais propriamente no Texas no final da década de 1830, quando este ainda não havia sido incorporado ao território dos EUA. A legislação foi adotada depois de uma crise econômica grave que levou ao endividamento de milhares de pequenos proprietários rurais, muitos dos quais acabaram perdendo a terra que provia seu sustento e, com ela, a própria moradia.
Por isso, até hoje, o estado do Texas tem uma das legislações mais favoráveis aos devedores. Qualquer propriedade familiar urbana de até 4 hectares ou até 40 hectares em área rural não pode ser executada por credores do proprietário. Kansas e Oklahoma possuem legislação semelhante, baseada no tamanho da propriedade. Nevada protege toda propriedade residencial independente do seu tamanho.
A grande parte dos estados, no entanto, estabelece limites de valores que são protegidos contra execução. Na Califórnia, somente está garantido contra execução o valor do imóvel de até US$ 300 mil. Semelhantes proteções parciais são previstas em quase todos os estados, mas em alguns o valor protegido é bastante baixo para a realidade americana, como ocorre no Colorado (US$ 75 mil), Novo México (US$ 60 mil) ou Alasca (US$ 54 mil).
Os estados que protegem a propriedade em patamares baixos não estabeleceram a legislação com o intuito de beneficiar credores ou mesmo de permitir o oferecimento do bem de família em garantia em operações de crédito de maior escala. Em geral, os estados, como os acima citados, que fixaram um “teto” de isenção contra execução o fizeram há muitas décadas e estabeleceram valores que correspondiam, à época, a um imóvel residencial modesto de classe média, cujo valor, no entanto, foi corroído pela inflação mas também pela crescente valorização do mercado imobiliário.
Obviamente que, como dito, a “homestead exemption” não se aplica aos credores dos contratos de hipoteca imobiliária (“mortgage”), principal meio de financiamento habitacional nos EUA. Mas ela é válida para proteger o “equity”, isto é, a parcela já quitada pelo devedor hipotecário. Se o devedor já tiver consolidado a quitação de valores que estão dentro dos limites de “exemption”, o proprietário não pode ser obrigado a vender o imóvel para beneficiar credores. Mas se o seu quinhão ultrapassar os limites da “homestead exemption”, os credores podem obrigá-lo à venda do imóvel, sendo-lhe assegurado eventual saldo remanescente.
A solução dos estados americanos que estabelecem um limite de isenção à penhora do imóvel residencial poderia entrar no debate brasileiro. O propósito da lei de proteger o abrigo do núcleo familiar é, sem dúvida, socialmente justificável.  Porém, a prática demonstra que uma proteção geral e ampla dos devedores, sem devido equilíbrio, pode se voltar contra a própria classe trabalhadora.
Quem acompanha a Justiça do Trabalho não raro se depara com situações em que ex-empregadores com dívidas trabalhistas enormes e sem outro patrimônio aferível continuam a desfrutar sua doce vida em mansões requintadas e valiosíssimas, enquanto seus antigos empregados permanecem em um eterno calote. Que todos os devedores tenham direito a um teto, mas esse teto não precisa ser de ouro.

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JOTA

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