Opinião e Análise

Cássio Casagrande

Eu não gosto de acompanhar o que chamamos de “futebol americano”, ou a National Football League (NFL).  Parece-me um esporte primitivo, brutal, estapafúrdio e enfadonho, cujas regras são de difícil compreensão, se comparados ao nosso refinado, simples, belo e apaixonante “futebol inglês”.
Mas, como devoto do Direito do Trabalho, confesso que sou um admirador do futebol americano, mais precisamente de seus combativos líderes trabalhistas representados pelo sindicato dos jogadores, o NFLPA (National Football League Players Association). Sonho com o dia em que nossos jogadores de futebol do Brasil atuem como eles e pressionem a indústria deste esporte a efetivamente considerar os seus interesses, não apenas nas milionárias negociações de direitos de TV e imagem, mas também nas suas péssimas condições de trabalho.
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Neste fim de semana que passou foi anunciado com grande estardalhaço nos Estados Unidos a celebração do acordo coletivo de trabalho (collective bargaining agreement) que regerá as relações entre os clubes e os atletas da NFL, a multimilionária liga do futebol americano. Sem esse acordo, o campeonato simplesmente não acontece.
<blockquote class="jota-article__eye">O acordo terá duração de dez anos e sua assinatura é considerada fundamental para a própria existência da liga, desde que os jogadores organizaram uma histórica e heróica greve em 1987.</blockquote>
É esta negociação que define, basicamente, os salários mínimos e máximos dos jogadores, o número de jogos e treinamentos a que estão sujeitos, suas participações nas milionárias receitas dos clubes (incluído direito de arena e de imagem), as condições para o exercício dos direitos de recrutamento (draft) e transferência (free angency).
Há regulações sobre planos de saúde e sistema de pensões. Também é objeto da negociação o tratamento a jogadores aposentados, especialmente os que são vítimas de lesões decorrentes da prática esportiva. Outro aspecto interessante do acordo é a fixação de uma política para sanções disciplinares e até mesmo as punições por uso de substâncias entorpecentes são regulados no instrumento normativo.
Durante os anos 1980 e 90 o esporte de alto rendimento norte-americano foi agitado por uma série de greves e locautes, pois foi durante esse período que as equipes começaram a adotar tetos salariais (salary caps) coletivos, e quando também os atletas começara a lutar pelo direito de livre transferência (ou fim do “passe” como chamávamos no Brasil).
<blockquote class="jota-article__eye">Muitas disputas laborais em torno da renovação dos acordos coletivos de trabalho entre jogadores e clubes resultaram em paralisações de campeonatos, por iniciativa dos atletas ou das associações de clubes.</blockquote>
A NBA (liga do basquete) parou por três meses na temporada 1995/1996 e por seis meses na temporada 1998/1999. A MLB (liga do baseball) teve greves em 1981, com cancelamento de 713 jogos e em 1994/1995, que resultou na não realização da pós-temporada (MLB World Series). A NHL (liga do hóquei), passou por greves com cancelamento de jogos nas temporadas 1991/1992 e 1995/1995. E, finalmente, a NFL (futebol americano), sofreu paralisações nas temporadas 1982 e 1987.
A greve de 1987 da NFL entrou para a história do futebol americano, pois representou um “turning point” nas relações laborais do setor. A grande reivindicação era o fim do “passe” e o direito de livre transferência. A paralisação, que começou com grande adesão dos atletas, ganhou ares dramáticos quando os clubes decidiram montar equipes alternativas com jogadores “fura-greves”(scabs), o que evidentemente baixou o nível técnico dos jogos e fez a audiência televisiva cair em 20% (um dirigente chegou a declarar que contrataria “qualquer jogador que conseguisse vestir uma camisa de futebol americano”).
Os jogadores profissionais chegaram a fazer piquetes em centros de treinamento e estádios de futebol para evitar o ingresso dos “scabs”, mas acabaram entrando em conflito com torcedores que não simpatizavam com o movimento de atletas, os quais, na sua visão, já recebiam altas remunerações. Diante do desgaste da paralisação, muitos atletas não resistiram e começaram a furar a greve, que acabou derrotada.
Mas os clubes tiveram uma vitória de Pirro.  A associação sindical dos atletas resolveu levar a questão do direito de passe às cortes federais, alegando que a prática violava a lei antitruste. Depois de uma batalha judicial que se arrastou durante anos, finalmente em 1993 as partes chegaram a um acordo no processo, com a reivindicação do direito de livre transferência finalmente atendida.
Os clubes tiveram reconhecido o direito de fixação de um teto salarial coletivo, cujo limite, no entanto, estava vinculado a um percentual a que os atletas teriam direito a partir de todos os lucros auferidos pela liga. As equipes também se obrigaram ao pagamento de um salário mínimo a todos os atletas inscritos na NFL. Estavam criadas, assim, as condições básicas das modernas relações de trabalho da liga de futebol americano.
<blockquote class="jota-article__eye">Foi em cima desta transação homologada judicialmente que os clubes e sindicatos de atletas do futebol americano negociaram os acordos coletivos seguintes. O primeiro vigorou de 1993 até 2006 e o segundo entre 2006 e 2020.  O terceiro, que durará até 2030, acaba de ser fechado.</blockquote>
Em linhas muito gerais, o novo acordo coletivo da NFL estabeleceu uma temporada de 17 jogos oficiais e três de pré-temporada a partir de 2021, num total de 18 semanas de duração. Os playoffs foram expandidos de 12 para 14 times já a partir da temporada 2020. Os períodos de treinamento antes do campeonato com jogos-treino são limitados a 16 sessões (redução enorme das 28 anteriores), por um máximo de duas horas e meia de atividades intensivas. Cada equipe poderá contratar no máximo 55 atletas (dois a mais do que no regime anterior), podendo ser relacionados para cada partida até 48 atletas (contra 46 do acordo anterior).
O salário mínimo será aumentado de 480 mil dólares para 570 mil dólares anuais. Embora não haja fixação de teto salarial individual, cada equipe não pode gastar mais do que 198,2 milhões de dólares em salários anualmente, ou 242,9 milhões se considerados benefícios (como planos de saúde) e prêmios por performance. Os clubes se comprometeram a reverter 48,5% de toda a renda recebida pela NFL em salários e premiações para os atletas.
<blockquote class="jota-article__eye">Quando examinamos os termos desse acordo coletivo de trabalho da NFL e de outras ligas esportivas norte-americanas percebemos o quão atrasados estamos em nosso futebol profissional, seja no aspecto econômico, social ou jurídico.</blockquote>
Atletas profissionais e seus sindicatos não têm praticamente nenhum poder de barganha sobre a organização do campeonato, calendários, condições de trabalho, sanções disciplinares, tratamento a aposentados ou lesionados, remuneração e distribuição de lucros.
Isso ficou bastante evidente nesse fim de semana, quando vários atletas foram obrigados a ir a campo nos campeonatos estaduais, em plena crise do coronavírus. No máximo, vimos um tímido protesto de jogadores do Grêmio, que entraram em campo com máscaras. É muito pouco. Definitivamente, as relações de trabalho no futebol brasileiro ainda estão na idade da pedra.

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JOTA

Acordo revela como relações de trabalho no futebol brasileiro estão na idade da pedra

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