Opinião e Análise

Cássio Casagrande

<p>No começo de 2021, a UBER divulgou em relatório aos acionistas que a empresa contava com 22% a menos de motoristas e entregadores do que no início do ano anterior. Embora a companhia tenha atribuído a forte queda na sua mão-de-obra à pandemia, a equação não parece tão simples.  Certamente muitos trabalhadores deixaram de trabalhar no último ano por medo de se exporem ao vírus ou por queda no movimento, embora, aqui, em contrapartida, tenha havido enorme crescimento no movimento de entregas de comprar e comida, segmento no qual a UBER também é forte.</p>
<p>Muitos dos que abandonaram a plataforma o fizeram porque, cansados do modelo de superexploração, decidiram optar por bônus emergenciais do governo ou aceitar um emprego convencional, cujos salários e benefícios crescem à medida que a economia americana se recupera, especialmente diante da grande escassez de mão-de-obra em setores como comércio e restaurantes.  A UBER sempre dependeu de um razoável nível de desocupação para existir, pois o seu motorista típico é o trabalhador desempregado, jovem e de baixa qualificação que aceita qualquer negócio para botar um prato na mesa.</p>
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<p>Agora a companhia e suas práticas trabalhistas predadoras enfrentarão um novo desafio: motoristas de Nova Iorque se organizaram e fundaram uma cooperativa que funcionará por meio de aplicativo.  A diferença é que, nesse modelo, os motoristas efetivamente serão donos do negócio, fixando o valor da tarifa e o percentil da cooperativa e, inclusive, distribuindo os lucros sob a forma de dividendos. Nas primeiras semanas do lançamento, impressionantes dois mil e quinhentos motoristas adquiriram cotas da cooperativa.</p>
<p>A cooperativa foi criada por um motorista de aplicativo, um organizador sindical e, mais interessante, uma alta funcionária do UBER que anteriormente ocupava cargo de direção na África oriental e que estava inconformada com as políticas de baixa remuneração da empresa. Todo o trabalho de construção de software do aplicativo foi feito de forma gratuita por voluntários da indústria de tecnologia.</p>
<blockquote class="jota-article__eye"><p>A cooperativa espera concorrer com o UBER oferecendo aos motoristas tarifas mais vantajosas e maior liberdade de trabalho, sem as “punições algorítmicas” típicas dos aplicativos convencionais. Os trabalhadores cooperados poderão, inclusive, continuar aceitando corridas para a UBER.</p></blockquote>
<p>O páreo não será fácil para os trabalhadores cooperativados, pois a UBER é conhecida por suas práticas monopolísticas e anticoncorrenciais e não será surpresa se ela “subsidiar” fortemente as corridas em Nova Iorque, aumentando o valor para os motoristas com o fim de derrubar a concorrência da cooperativa. Se o fizer, no entanto, arrisca incorrer nas duras leis americanas de livre concorrência. Será, sem dúvida, uma luta de David contra Golias, pois não será fácil enfrentar uma empresa multibilionária já estabelecida cujo aplicativo se encontra em praticamente todo aparelho celular.</p>
<p>O grande risco para a UBER é que se a cooperativa triunfar, a experiência possivelmente se espalhará para outras metrópoles, onde motoristas experientes tem expertise e contatos para avaliar as melhores oportunidades dos mercados locais, estabelecendo, por exemplo, contratos com hotéis e empresas da cidade.</p>
<p>A experiência de criação de cooperativas contra os tubarões da Gig Economy não é inédita. John Sewell, proprietário de um pequeno restaurante em Iowa City, revoltou-se quando a GrubHub obteve o monopólio do serviço de <em>delivery</em> em sua cidade e passou a cobrar taxas escorchantes dos fornecedores.  Ele juntou vários outros donos de bares e restaurantes e criou uma cooperativa própria de entrega, que virou uma franquia e está se espalhando para outras cidades dos EUA, propondo, inclusive, uma forma mais justa de remuneração dos entregadores.</p>
<p>Aliás, a criação de cooperativas no setor de transporte é uma experiência conhecida mesmo no Brasil, e muito antiga, diga-se. Em Curitiba, desde os anos 1980, o sistema de táxi operava desta forma, com um sistema de rádio, que fazia exatamente a mesma coisa que os aplicativos hoje desempenham: o cliente ligava para a cooperativa, que por meio de rádio localizava o veículo do cooperado que se encontrava mais próximo do passageiro. A cooperativa era constituída por cotas dos motoristas. Esse sistema continua atuante e o radio foi substituído por um aplicativo próprio.</p>
<p>Pode-se perguntar se a modalidade de cooperativa não seria uma forma de exploração de motoristas semelhante a dos aplicativos. Evidentemente que não, pois nessa hipótese os trabalhadores são os próprios gestores do negócio, podem definir tarifas e comissão da cooperativa em assembleia, e não estão sujeitos a controle por meio de punições ou premiações determinadas por algoritmo concebido com o fim de extrair o máximo de lucro do trabalhador. Além disso, a cooperativa pode estabelecer um fundo comum para pagamento de benefícios como seguro coletivo e afastamento por motivo de saúde.</p>
<p>Cada vez mais, percebe-se que o modelo de superexploração da mão-de-obra de trabalhadores das empresas de transporte por aplicativo é insustentável e está encontrando seus limites na resistência dos explorados, sob a forma de auto-organização. Nada que já não acontecesse no século XIX.</p>
<p>***</p>
<p>Os fatos relativos à organização de cooperativa pelos trabalhadores em Nova Iorque foram baseados na reportagem de Kate Conger, para o New York Times, de 28/05/2021.</p>
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JOTA

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