Não entendi bem o sentido da viagem de cinco ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) à Nova York, para participar de um evento privado, em uma segunda-feira na qual todos os brasileiros estavam trabalhando normalmente (ao que consta o feriado caiu na terça). Metade da Suprema Corte brasileira decidiu sair do país em excursão a um convescote de empresários liderado pelo ex-governador João Doria, em momento delicado no qual a tempestade pós-eleitoral ainda não amainou. Aguardo, esperançosamente, o dia em que representantes da nossa excelsa corte constitucional se desloquem em bloco de Brasília, com o propósito de discursar para trabalhadores e sindicalistas em Camaçari ou em São Gonçalo.
Enquanto isso não ocorre, reflito sobre o que se passou na cidade que nunca dorme. Em se tratando de um evento totalmente privado (Brazil Conference), não parece que os ministros tenham viajado em “missão oficial”, embora é de se imaginar que se tenham valido de seus passaportes diplomáticos para evitar as terríveis filas que os portadores de visto de turista enfrentam no aeroporto JFK. O que chama a atenção é que aparentemente não havia nenhuma proteção do governo dos EUA à disposição dos nossos ministros – e nem poderia haver, porque, como visto, se tratava de visita privada ao país.
Bem, essa imprudência dos organizadores e dos próprios ministros levou a cenas lamentáveis e a um real risco de segurança física às suas pessoas. Como era de se imaginar, no desvario do inconformismo pela derrota eleitoral, um bando de bolsonaristas celerados e fascistoides se reuniu às portas do hotel em que o grupo se hospedava, assediando a comitiva judicial brasileira com uma torrente de palavrões e agressões verbais, em conduta vergonhosa, pusilânime e ameaçadora. Alguns aloprados chegaram a esmurrar o veículo que levava os ministros e outros tentaram até se pendurar sobre o capô do automóvel. Um punhado de seguranças privados tentava conter a turba de alucinados. Ministros foram perseguidos nas ruas e em restaurantes.
Os covardes “patriotas”, portando adereços verde e amarelo na sua sina inabalável de envergonhar o país, bradavam nas ruas de Manhattan o seu direito de “liberdade de expressão”, que, para eles, seria absoluto nos EUA. Ignoram que não estavam praticando uma forma de freedom of speech, mas pura e simplesmente atos de delinquência. Basta lembrar que os membros da Suprema Corte dos EUA contam com proteção do serviço de segurança do Judiciário federal e se um manifestante se aproximar a alguns palmos deles, berrando impropérios e cuspindo perdigotos, será derrubado ao chão, preso, algemado e processado.
Sim, nos EUA é permitido defender, no plano das ideias, ações violentas, ditaduras e até mesmo racismo (conforme o precedente Brandenburg v. Ohio, de 1969). Mas não se pode “praticar” violência, ditadura ou racismo. Daí a clara distinção, no direito americano, entre “palavra” e “conduta”. A Suprema Corte deixou isso bastante evidente desde o caso Chaplinsky v. New Hampshire, de 1942, quando criou a categoria “fighting words”, para definir as formas agressivas de expressão, que “convidam à briga”, e que por isso não estão protegidas pela Primeira Emenda. Esse julgamento, aliás, foi aquele em que a Suprema Corte, no célebre voto do juiz Murphy, declara de forma inédita, com todas as letras, que a liberdade de expressão nos Estados Unidos não é absoluta.
Mas nem precisaríamos recorrer à jurisprudência da Suprema Corte dos EUA para concluir pela manifesta ilegalidade da conduta dos bolsonaristas ensandecidos em Nova York. É da tradição do direito americano, escorado nos vetustos princípios da Common Law, a possibilidade de repressão, pela autoridade policial, do “breach of peace” (quebra da paz pública) ou da “disorderly conduct” (conduta desordeira em público). Ou seja, situações de arruaça em via pública, com comportamento agressivo, palavras belicosas, ameaças, gritos, uso de linguagem vulgar ou ofensiva, não estão protegidas pela cláusula de liberdade de expressão.
Creio que os ministros do STF estavam em lugar errado e na hora errada; obviamente, nada disso justifica a agressão escandalosa de que foram vítimas. Mas o episódio serve também para refletir sobre as viagens internacionais de nossos juízes constitucionais, com o fim de participar de eventos acadêmicos, institucionais ou puramente privados. Como sempre no Brasil, o acontecido mostra como a separação entre o público e o privado acaba sendo nebulosa e esmaece o sentido da conduta republicana. Se os ministros estivessem em Nova York oficialmente, resguardados pelo Itamaraty e protegidos pelas autoridades americanas, os seus agressores possivelmente estariam agora aguardando julgamento em uma cadeia pública.