Opinião e Análise

Cássio Casagrande

Doroth Helena, mais conhecida pelo seu público como MC Pipokinha, é uma cantora e dançarina de funk, cujas polêmicas performances são sexualmente provocativas e, para alguns de seus críticos, ultrajantes. Seus shows contêm alusões explícitas a atos libidinosos, nas letras e nas danças. No ano passado, a artista postou trechos de suas exibições públicas no Facebook e os responsáveis por essa rede social decidiram suspender sua conta, ao argumento de que ela teria violado regras da empresa, "o que inclui publicar fotos, propor serviço de cunho sexual e usar linguagem sexualmente explícita".
Inconformada, a artista recorreu ao Judiciário paulista e na semana passada obteve decisão favorável. O juiz Vitor Pereira entendeu que a suspensão da conta era ilegal tanto do ponto de vista do procedimento como quanto ao seu mérito. De um lado, os moderadores de conteúdo do Facebook teriam tomado a decisão “sem detalhar quais denúncias teriam motivado a suspensão da sua conta, sem citar quais publicações foram consideradas ofensivas”. Além disso, entendeu não haver indícios “de que as letras das músicas façam solicitação sexual ou resvalem para a pornografia”. Ainda quanto a esse particular, acrescentou que nas fotos anexadas ao processo “ela encontra-se devidamente vestida, sem exposição sexual afrontosa ou pornográfica”.
O caso MC Pipokinha parece-me bastante emblemático para se debater a <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/liberdade-de-expressao">liberdade de expressão</a> nas redes sociais e a possibilidade de moderação ou censura do conteúdo postado, pelas empresas controladoras do meio. A questão é constitucionalmente relevante, tanto do ponto de vista procedimental quanto material, especialmente nesse momento em que as gigantes do setor alegam perante a Suprema Corte dos EUA a impossibilidade de serem responsabilizadas juridicamente pelo conteúdo postado pelos usuários, em aparente paradoxo, ou seja, sustentam sua imunidade pelas postagens de terceiros ao mesmo tempo em que exercem poder de veto sobre o que é veiculado, a partir de “denúncias” de outros clientes.
Ainda que as empresas mantenedoras de redes sociais não sejam legalmente obrigadas a controlar o conteúdo postado por seus usuários, a jurisprudência, tanto no Brasil, como nos EUA, tem se inclinado a admitir que elas, em razão de sua natureza privada, possam fazê-lo em situações específicas, quando, por exemplo, essas postagens caracterizarem crime, violarem direitos de terceiro ou valores sensíveis à comunidade, como nas situações de discurso de ódio ou antidemocrático, notícias falsas, ou de publicações que firam a moralidade média, especialmente de conteúdo sexual. Veja-se, por exemplo, nos Estados Unidos o caso Prager University v. Google, decidido pela Corte Federal de Apelações do 9º Circuito (No. 18-15712, 9th Cir. 2020) e, no Brasil, caso que envolveu a rede social Orkut (REsp 1342640/SP, Rel. Ministra Nancy Andrighi, 3ª. T., DJe 14.02.2017).
A questão problemática é que, com frequência, é difícil estabelecer os limites precisos do que constitui ou não um discurso de ódio ou antidemocrático, uma notícia falsa e, pior ainda, os padrões objetivos de moralidade pública. Aquela que para alguns é uma dança “sensual e provocativa”, para outros poderá parecer uma performance “indecorosa” ou “explicitamente erótica”. Não é fácil traçar uma linha nesse terreno. Confiar apenas no julgamento subjetivo dos “juízes privados do Facebook”, escolhidos, treinados e remunerados por Mark Zuckerberg, não parece ser a melhor das soluções.
Inclusive pelo fato de que, apesar de sua constituição privada e finalidade lucrativa, para muitos as redes sociais se aproximariam – em razão da natureza de suas atividades, abertura generalizada ao público e impacto social – do conceito constitucional de “ente privado em esfera pública”, tese que até o momento tem tido pouco apelo no Legislativo e no Judiciário dos EUA e do Brasil, em cujos modelos normativos a “moderação de conteúdo” estaria mais próxima da “discricionariedade editorial” do que da “censura”, visto que esta, como conceito tradicional, seria apenas aquela emanada de um agente estatal (a “state action doctrine” do direito americano).
De qualquer forma, o atual modelo de moderação vem permitindo muitas arbitrariedades em relações contratuais nas quais o desequilíbrio de poder econômico entre os contratantes é manifesto, com contratos unilaterais (“termos de uso”) que deixam enorme espaço subjetivo e arbítrio nas mãos das megacorporações que controlam as redes sociais, diante de usuários individuais que muitas vezes tem os seus “recursos” ao “tribunal do Facebook” (e congêneros) sequer considerados ou sumariamente descartados, sem maiores explicações.
Por isso, chama a atenção a decisão proferida no caso MC Pipokinha, especialmente no trecho em que o juiz Vitor Pereira analisa como a conduta do Facebook, pela sua arbitrariedade, dificulta até mesmo a defesa da artista. Como visto, a empresa ré analisou a reclamação de um membro da comunidade em termos genéricos, “sem detalhar quais denúncias teriam motivado a suspensão da conta, sem citar quais publicações foram consideradas ofensivas”.
Será interessante acompanhar esse caso nos tribunais superiores, para ver se a jurisprudência se acomodará ao simples entendimento de que as redes sociais, como entes privados, podem estabelecer os contratos e executá-los ao seu bel-prazer, ou se, diante do enorme desequilíbrio entre as grandes corporações de mídias sociais e seus usuários hipossuficentes, as futuras decisões tenderão a exigir um mínimo “devido processo legal privado” a garantir os direitos de liberdade de expressão na esfera pública de milhões de internautas.

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JOTA

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MC Pipokinha, liberdade de expressão e o tribunal do Facebook

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