Opinião e Análise

Cássio Casagrande

Nessa semana, assistiremos ao início das sabatinas senatoriais dos indicados à Suprema Corte dos EUA e ao Supremo Tribunal Federal no Brasil; teremos uma ótima oportunidade para um exercício de direito comparado entre os dois sistemas constitucionais, que são muito semelhantes quanto ao processo de escolha para o relevante encargo. Embora a Constituição dos EUA não exija notável saber jurídico e reputação ilibada para a designação dos juízes constitucionais, na prática essas exigências são feitas de forma muito mais rigorosa do que no Brasil.
Prova disso é que no passado recente diversas indicações presidenciais falharam, seja porque os indicados acabaram retirando sua candidatura diante de possível reprovação, seja porque o Senado acabou rejeitando os nomes apontados pelo presidente ou simplesmente os ignorou.
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Desde 1900 até os dias de hoje, nove indicações presidenciais para a Suprema Corte dos EUA “bugaram”: quatro foram rejeitadas durante a sabatina senatorial, três candidaturas foram retiradas pelos indicados ao anteverem provável rejeição e duas foram desconsideradas, resultando peremptas. O curioso é que, tirante a fracassada indicação de John Parker por Herbert Hoover em 1930 – rejeitado pelo Senado – todos os demais falhanços se deram a partir de 1968.
E isso não é difícil de entender: a famosa Corte Warren, com sua pauta ativista de afirmação de direitos civis nos anos 1950-60 ressaltou a relevância da corte no processo de judicialização da política nos EUA, transformando as escolhas de seus membros em acirradas disputas partidárias, o que foi ainda mais acentuado a partir da controversa decisão sobre o aborto, em 1973 (no caso Roe v. Wade).
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Por isso, se a rejeição de Parker em 1930 pode ser tida como um episódio extraordinário e pitoresco, o mesmo não se pode dizer das diversas nomeações acidentadas a partir do governo Lyndon Johnson. A polarização política na indicação presidencial dos membros da Suprema Corte começou com a própria substituição de Earl Warren em 1968, quando o lendário Chief Justice pediu aposentadoria. Johnson decidiu elevar o Associate Justice Abe Fortas à condição de presidente da corte, e indicou para a vaga subsequente que se abria Homer Thornberry. Os Republicanos estrilaram, pois consideravam Fortas excessivamente próximo ao presidente Johnson, já que ele frequentava os jantares da Casa Branca, sendo acusado de atuar como um conselheiro quase informal da presidência.
Além disso, alguns de seus negócios privados obscuros começaram a ser investigados por uma Comissão do Congresso, o que o convenceu a retirar sua candidatura à presidência da Suprema Corte. Como ele permaneceu na corte apenas como membro do colegiado de nove juízes, a indicação de Thornberry caducou.
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Nixon se elegeu naquele mesmo ano e já em 1969 começou a fazer suas indicações. Embora bem sucedido na indicação de Warren Burger como presidente da Corte no ano em que tomou posse, passou a enfrentar um Senado hostil, com muitos Democratas que queriam se vingar do tratamento dado pelos Republicanos a Abe Fortas. Sua indicação do juiz federal Clement Haynsworth (para substituir justamente Fortas que acabara renunciando ao cargo de juiz devido às investigações do Congresso) foi rejeitada por 55 a 45, especialmente devido a oposição de setores sindicais e de defesa da igualdade racial, que protestaram contra suas decisões bastante conservadores nesses temas.
Depois desta derrota Nixon indicou outro juiz federal, Harrold Carswell, desta vez um magistrado “low profile”, na esperança de que sua aceitação fosse mais tranquila. Um Senador da base governista chegou a vaticinar que o indicado “não terá problema em ser confirmado, a menos que tenha cometido algum homicídio – recentemente”. Mas Carswell causou péssima impressão ao visitar os Senadores, que passaram a questionar sua competência jurídica e ele foi atacado também por suas posições pouco claras quanto à questão racial. Resultado: mais uma derrota, dessa vez por 51 a 45.
<blockquote class="jota-article__eye">Nixon aprendeu a lição e passou a ser mais criterioso nas suas indicações, emplacando três nomes antes de sua renúncia (Harry Blackmun, Lewis Powell e William Rehnquist).</blockquote>
Seu vice Gerald Ford, que completou o segundo mandato, ainda acrescentou mais um à lista de designações bem-sucedidas, John Paul Stevans, juiz aparentemente conservador que se tornaria um liberal com o passar do tempo. Jimmy Carter foi um presidente azarado, sendo o único no século XX que não teve nenhuma vacância durante seu mandato de quatro anos e por isso não indicou ninguém.
Ronald Reagan teve mais sorte, pois pôde preencher quatro vagas durante seus oito anos como presidente, incluindo a de presidente da Suprema Corte (elevando William Rehnquist ao posto), da primeira mulher a ocupar uma cadeira naquele tribunal (Sandra Day O´Connor) e do aclamado Antonin Scalia (aprovado por 98 a 0), mas em compensação passou o desgaste de ver duas indicações sucessivas frustradas, uma rejeitada pelo Senado e outra retirada pelo próprio indicado.
Quando Reagan escolheu em 1987 o consagrado e altamente qualificado jurista conservador Robert Bork, a aprovação no Senado parecia uma mera formalidade, porém uma forte campanha oposicionista liderada por Ted Kennedy e a inabilidade do candidato diante de uma sabatina dura levaram a uma surpreendente rejeição por 58 a 42 votos, jamais perdoada pelos Republicanos. Pesou também o fato de que o governo Reagan, em final de segundo mandato, estava bastante desgastado na opinião pública e no Congresso, especialmente após as revelações do escândalo Irã-Contras. Reagan indicou então, precipitadamente, Douglas Ginsburg, outro mau passo, pois o escolhido acabou retirando sua candidatura antes da sabatina, depois que a imprensa passou a divulgar que ele havia sido um regular consumidor de marijuana na juventude. Finalmente, já no último ano de seu governo, a administração do presidente californiano emplacou o nome de Anthony Kennedy, aprovado por 97 a 0.
<blockquote class="jota-article__eye">George Bush pai e Bill Clinton navegaram em águas mais tranquilas em suas indicações à Suprema Corte, cada qual tendo preenchido duas vacâncias.</blockquote>
Bush pai, todavia, esteve perto de um falhanço espetacular em sua segunda indicação (depois de emplacar David Souter por 90 a 9), ao escolher Clarence Thomas, que enfrentou pesadas acusações de assédio sexual durante a sabatina - transmitida como um show pela TV - mas acabou sendo aprovado por estreitíssima margem (52 a 48); o episódio é retratado no filme “The Confirmation”. Clinton não teve qualquer dificuldade em fazer aprovar os nomes de Ruth Bader Ginburg (96 a 3) e Stephen Breyer (87 a 9).
Bush filho, como os dois antecessores, também indicou apenas dois juízes em seus oito anos de mandato. Em 2005, com o falecimento do Chief Justice Rehnquist, designou o atual presidente John Roberts, que já havia sido apontado semanas antes para ocupar a cadeira vaga pela aposentadoria de Sandra Day O’Connor. Com a vaga ainda remanescente de O’ Connor, Bush filho teve a ideia de indicar outra mulher, mas a escolha não muito feliz recaiu sobre sua advogada pessoal Harriet Miers, que o assistia desde os tempos em que fazia política no Texas. Ela, que jamais havia cogitado a indicação e ficou em choque quando soube da intenção do presidente, passou a ser questionada pela comunidade jurídica e por congressistas quanto a seus conhecimentos em matéria constitucional e, constrangida, acabou pedindo para que seu nome fosse retirado. Em seu lugar, o Senado aprovou o altamente conservador Samuel Alito, por apertados 58 a 42 votos.
<blockquote class="jota-article__eye">Barack Obama viu surgirem três vacâncias em seus oito anos de mandato.</blockquote>
Depois de lograr êxito com a indicação de duas mulheres, Sonia Sotomayor em 2009 (68 a 31) e Elena Kagan em 2010 (63 a 37), teve uma terceira oportunidade inesperada no último ano de seu mandato em razão do falecimento do Juiz Antonin Scalia. A história é conhecida e muito lembrada agora: embora tenha indicado o moderado Merrick Garland, o Senado de maioria republicana negou-se a votar o nome ao argumento que faltavam “apenas” nove meses para as eleições presidenciais e a indicação caducou, em episódio denunciado pelos Democratas como um golpe institucional, especialmente porque agora a mesma maioria de Senadores republicanos quer votar às pressas a escolha de Donald Trump a menos de um mês da eleição.
Donald Trump, aliás, em apenas quatro anos de mandato, além da corrente indicação de Amy Coney Barret, obteve a aprovação de dois outros juízes de perfil conservador, Neil Gorsuch e Brett Kavanaugh, sendo que este foi aprovado pela margem mais apertada de toda a história (50 a 48), já que, como Clarence Thomas, também enfrentou denúncia de abuso sexual e foi submetido a dura sabatina.
Embora nossa Constituição seja expressa quanto à exigência de notável saber jurídico e reputação ilibada, talvez devêssemos aplicar esses critérios com o mesmo rigor que temos visto nos EUA, já que aqui todos os 27 designados ao STF desde o governo Sarney foram chancelados pelo Senado, a maioria em sessões quase festivas. Por aqui parece valer a regra criada por aquele Senador norte-americano durante o governo Nixon: os indicados são aprovados desde que não tenham cometido homicídio – recentemente.

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JOTA

Constituição americana não exige notável saber jurídico e reputação ilibada, mas na prática sarrafo é alto

Breve história de falhanços nas indicações à Suprema Corte dos EUA

Nessa semana, assistiremos ao início das sabatinas senatoriais dos indicados à Suprema Corte EUA e ao Supremo Tribunal Federal no Brasil