Opinião e Análise

Cássio Casagrande

Em um dia de maio de 2017, a adolescente americana Brandi Levy, 14 anos de idade, saiu da escola onde estudava bastante aborrecida. Ela havia treinado com empenho na equipe de “cheer leaders” da Mahanoy Area High School, no oeste da Pennsylvania, mas acabou não sendo selecionada para representar o time do colégio em uma competição.  Pretendendo expressar sua frustração, postou no Snapchat uma foto com o dedo do meio levantado e a legenda: “fuck school, fuck softball, fuck cheer, fuck everything”. Ela mandou ainda outra mensagem, questionando os critérios para a escolha de uma determinada aluna para a equipe.
Quando disparou seu post desaforado pelo Snapchat, a rebelde Brandi jamais poderia ter imaginado que, alguns anos mais tarde, suas palavras malcriadas e insolentes estariam sendo lidas e analisadas pelos nove Juízes da Suprema Corte dos Estados Unidos, em Washington DC. Ou que, graças a ela, o vocábulo “fuck” apareceria em um acórdão daquele excelso tribunal pela primeira vez em 232 anos - e transcrita pelo venerável Justice Joseph Breyer, atualmente com 82 anos.
<a href="https://www.jota.info/produtos/poder?utm_source=Banner%20site&amp;utm_medium=Artigos&amp;utm_campaign=CTA_Poder_materias"><img class="size-medium wp-image-292717 aligncenter" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2021/01/jota-pro-poder.jpg" alt="" width="688" height="688" /></a>
Tudo começou quando a postagem, recebida por cerca de 250 seguidores, a maior parte colegas da sua escola, chegou rapidamente - como era de se imaginar - à direção do estabelecimento e aos treinadores do time da Mahanoy Area High School, que decidiram suspendê-la de participar de qualquer atividade da equipe por um ano.
Inconformada com a punição e contando com o apoio de seus pais e da poderosa American Civil Liberties Union (ACLU), Brandi Levy processou a escola, pedindo a anulação do procedimento disciplinar, sua reintegração à equipe de cheerleaders e uma indenização por danos. Por meio de seus representantes legais, ela ajuizou a ação perante a Justiça Federal na Pennsylvania e em suas razões de pedir estava tocando em um tema sempre sensível e controverso na jurisprudência americana: até que ponto as administrações das escolas públicas (board of education) podem limitar a liberdade de discurso de seus alunos?
O debate é antigo e remonta à década de 1960, quando os irmãos Tinker decidiram comparecer à sua escola em Des Moines, Iowa, portando uma braçadeira com o símbolo da paz, para protestar contra a Guerra do Vietnã. Eles foram punidos com suspensão das aulas, mas recorreram ao judiciário e depois de um longo percurso a Suprema Corte lhes deu razão. Os Justices entenderam, então, que as garantias da Primeira Emenda se aplicam aos estudantes em escolas públicas de nível médio; assim, as autoridades educacionais que pretendem censurar a expressão dos alunos precisam demonstrar que isso só é justificável se o seu conteúdo interferir de forma significativa na disciplina necessária ao funcionamento da escola.
Representando o voto da maioria de sete votos naquele que é o precedente mais paradigmático sobre o tema, o Juiz Abe Fortas assim se manifestou: “Dificilmente pode-se argumentar que estudantes e professores deixam seus direitos de liberdade de discurso e de expressão nos portões da escola”. Aduziu que a norma criada pelos dirigentes escolares tinha o claro propósito de ‘evitar a controvérsia que poderia surgir da expressão dos alunos, inclusive pelo silencioso símbolo das braçadeiras, como uma forma de oposição ao envolvimento desta nação na conflagração do Vietnã.” Assim, em Tinker v. Des Moines Independent Community School District, 393 U.S. 503 (1969), a Suprema Corte fixou o standard de querecai sobre as escolas o ônus de demonstrar que o discurso restringido é disruptivo às atividades escoares e, portanto, passível de censura legítima.
O tema voltou à pauta da Suprema Corte no caso Bethel School District No. 403 v. Fraser, 478 U.S. 675 (1986). No dia 26 de abril de 1983, Matthew Fraser, aluno do último ano do ensino médio em Pierce County, estado de Washington, proferiu um discurso em uma assembleia de alunos, em apoio à candidatura de seu amigo Jeff Kuhlman, ao cargo de vice-presidente do grêmio estudantil. Ele se valeu então de frases jocosas, empregando palavras e expressões de duplo sentido com conotação sexual.  Disse, por exemplo, que o seu colega Jeff “era um sujeito rijo, rijo de caráter e rijo sob as calças”; e que ele “faria de tudo pelos estudantes”, pois sempre “iria até o finalzinho até atingir o clímax”.
Todo o seu pronunciamento estava recheado de frases com segundas intenções, como essas. Matthew Fraser recebeu uma pena disciplinar de suspensão da escola por três dias, sob a alegação de perturbação da ordem e de utilização de discurso vulgar e ofensivo. O aluno recorreu administrativamente desta decisão, que, todavia, foi mantida. Depois disto, foi ainda proibido de concorrer a orador da turma na cerimônia de colação de grau. Apesar de seu nome não constar da cédula de votação no concurso de orador da turma, muitos colegas escreveram o nome dele manualmente e ele ficou em segundo lugar, mas a escola não reconheceu este resultado. Com a autorização de seus pais e o apoio da mesma American Civil Liberties Union, Matthew Fraser ajuizou uma ação contra a sua escola perante a Justiça Federal de primeira instância, alegando que seu direito de liberdade de expressão, protegido pela Primeira Emenda, fora violado pela direção do estabelecimento educacional.
A decisão foi julgada procedente em favor do aluno, tendo sido mantida pela Corte de Apelações do Nono Circuito. A escola, então, recorreu à Suprema Corte que, por maioria de sete a dois, em decisão redigida pelo presidente Warren Burger, reverteu a decisão do juízo a quo, entendendo que a escola tinha legitimidade para restringir a liberdade de expressão no ambiente escolar, quando manifestações perturbassem a ordem interna da escola (seguindo a exceção do caso Tinker). Assim, fixou-se o entendimento de que a escola poderia punir um estudante por este ter proferido discurso em linguagem “indecente e lasciva – ainda que não obscena”.
No precedente Hazelwood School District v. Kuhlmeier, 484 U.S. 260 (1988) a Suprema Corte apreciou se dirigentes de escolas públicas poderiam censurar jornais estudantis desenvolvidos como atividade escolar e patrocinados por recursos públicos. Este era o caso do The Spectrum, jornal publicado a cada três semanas, na escola de ensino médio (high school) Hazelwood, em St. Louis, Missouri. Em dez de maio de 1983, como era rotineiro, o editor submeteu ao diretor da escola a edição que circularia dali a três dias. Havia no jornal duas matérias elaboradas por alunas do curso de jornalismo que lhe pareceram inconvenientes, uma sobre gravidez na adolescência e outra sobre divórcio. O diretor achou que as matérias em questão eram inadequadas para alunos de certas faixas etárias e determinou que elas não fossem publicadas. Além disto, acreditou que alunas da escola que haviam engravidado, entrevistadas sob anonimato, poderiam ser facilmente identificadas. No caso de divórcio, um dos alunos reclamava da falta de atenção do pai e o diretor acho que ele deveria ter sido ouvido pela reportagem.
<blockquote class="jota-article__eye">Por maioria de cinco a três, estabeleceu a Suprema Corte que todas as atividades patrocinadas oficialmente pela escola, incluindo jornais estudantis e peças de teatro, não se encontram dentro do espectro de proteção da Primeira Emenda, sendo passíveis de censura por órgão de administração escolar.</blockquote>
Isto porque “as escolas públicas não podem ser equiparadas a ruas, parques e outras formas tradicionais de fórum público, (...) a menos que elas estejam abertas ao uso indiscriminado pelo público geral” e este não era o caso da Hazelwood. Assim, seguindo esse raciocínio, concluiu-se que os educadores não infringem os direitos da Primeira Emenda ao exercer controle sobre a palavra dos estudantes em atividades patrocinadas pela escola, “desde que as ações respectivas estejam razoavelmente relacionadas a considerações legítimas de natureza pedagógica”.
Já nos primeiros anos da atual Corte Roberts, a Suprema Corte deparou-se com o curioso caso Morse v. Frederick, 551 U.S. 393 (2007).  Na manhã do dia 24 de janeiro de 2002, a tocha olímpica dos Jogos Olímpicos de Inverno iria passar pela cidade de Juneau, no Alaska, bem em frente a uma escola do ensino médio (Juneau-Douglas High School). Os estudantes foram dispensados para prestigiar e assistir a cerimônia, junto com seus professores, tendo se posicionado do outro lado da rua, para aguardar a passagem da comitiva.
Um aluno gaiato, Joseph Frederick, improvisou uma faixa com a inscrição "BONG HITS 4 JESUS", algo como "baratos do baseado por Jesus", bem em frente onde as câmeras de TV estavam posicionadas. A diretora da escola, Deborah Morse, dirigiu-se ao grupo e confiscou a faixa, por entender que ela violava a política antidrogas da instituição de ensino. Depois do incidente, Frederick foi suspenso por cinco dias, sendo sua pena dobrada quando questionou a punição citando o founding father Thomas Jefferson. Ele recorreu administrativamente a todas as instâncias escolares, mas sua pena foi diminuída em apenas dois dias.
O aluno, então, propôs ação na Justiça Federal dos EUA, alegando violação a seu direito de liberdade de expressão. A decisão de primeiro grau negou seu pedido, mas a corte de apelações reverteu a decisão em seu favor. Por maioria, a Suprema Corte restabeleceu a decisão de primeiro grau, fixando o entendimento de que as escolas têm o dever de salvaguardar os alunos que lhes foram confiados, o que inclui protegê-los de discursos que possam ser considerados como incentivadores do consumo de drogas. Mesmo que os alunos estivessem fora dos limites físicos da instituição de ensino, a atividade era supervisionada pelas autoridades escolares, que não violaram a Primeira Emenda ao confiscar a faixa favorável ao uso de drogas e ao suspender Frederick.
O caso da Mahanoy School, apreciado na semana passada, trouxe questão semelhante ao do precedente Morse, porém mais específica, a justificar um “distinguishing”:  debateu-se o poder disciplinar da autoridade escolar em relação a discurso proferido fora da escola, mas exercido além do horário de aula e sem supervisão de professores. Afinal, podem os alunos serem monitorados pelas escolas por 24 horas em suas redes sociais, quanto a discursos que afetem, direta ou indiretamente, a sua condição de estudante?  E, de outra parte, poderia esse discurso dos alunos em redes sociais ser “ilimitado” a ponto de perturbar seriamente o ambiente escolar?
A preocupação com o poder disciplinar extra-muros ou “off-campus” é especialmente relevante depois do advento da pandemia, já que muitas atividades educacionais ocorrem em ambiente virtual, ainda que fisicamente os alunos estejam em casa, sob a tutela de seus pais. Essa circunstância certamente pesou na decisão da Suprema Corte, tomada no ano passado, em admitir o recurso.
O Justice liberal Stephen Breyer, que escreveu a decisão da Corte em nome da maioria, reconheceu que a Suprema Corte não poderia pura e simplesmente determinar de forma abrangente que todo e qualquer discurso proferido em ambiente virtual por alunos estaria protegido pela Primeira Emenda. Isso incluiria autorizar práticas de bullying ou assédio contra outros alunos, ameaças a professores e estudantes, a desobediência ao cumprimento de tarefas escolares extra-classe, e à participação nociva em atividades online.
O Juiz Breyer também salientou que a distinção on campus/off campus nem sempre é fácil de divisar, mas que há um certo consenso de que o aluno deve ser considerado sob tutela da escola mesmo estando fisicamente fora dela em certas circunstâncias, quando, por exemplo, se encontra em suas imediações, no transporte escolar, quando está usando um laptop ou email fornecido por ela, em salas de aula virtuais, ou ainda em atividades extra-curriculares oficiais.
Exatamente em razão da crescente revolução tecnológica no ensino, o redator da decisão ponderou que seria temerário estabelecer de forma categórica uma lista fechada e exaustiva, determinando aprioristicamente em que circunstâncias de espaço e tempo os alunos estariam ou não livres para proferir discursos que afetam o relacionamento com a escola, os professores e seus colegas.  Breyer justificou a opção da Corte por uma decisão mais estreita no caso (“narrow”), baseando-se, sobretudo, no fato de que o palavrório vulgar de Brandi Levy ocorreu em situação de espaço e tempo na qual a escola não estava in loco parentis, vale dizer, não substituía os pais no exercício do poder disciplinar. Ademais, apesar do desconforto que a mensagem da aluna possa ter causado em alguns alunos e professores, não chegou a ser “disruptiva” das atividades escolares. A Suprema Corte decidiu, assim, por oito votos contra um (vencido o Juiz Clarence Thomas), que a punição a Brandi Levy foi desproporcional e inconstitucional, tendo violado o seu direito de liberdade de expressão.
Em conclusão, neste caso que entrará para os anais da Suprema Corte como Mahanoy Area School District v. B.L., 594 U.S. ___ (2021), entendeu a maioria que uma permissão ampla às escolas de monitoramento permanente de tudo que os alunos expressam em redes sociais 24 horas por dia tenderia a inibir a livre expressão, contrariando um dos maiores propósitos da educação pública, que é a de proteger discursos estudantis impopulares, indispensáveis à construção de um livre mercado de ideias (marketplace of ideas). Por fim, arrematou em grande metáfora o Juiz Breyer, ao afirmar que a punição de Brandi Levy contraria a concepção de que as escolas públicas são o “berçário da democracia”.
Em síntese, a decisão da Suprema Corte limita, mas não veda, o poder das autoridades escolares em punir discursos no ambiente virtual que afetem direta ou indiretamente a comunidade escolar.
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JOTA

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'Fuck school': Liberdade de Expressão de alunos em redes sociais

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