Opinião e Análise

Cássio Casagrande

Com uma narrativa inconvencional e ousada, construída através de um espetáculo visual como há muito não se via no cinema americano, “Elvis” é também uma viagem deliciosa pela vida cultural e política dos EUA entre o fim dos anos 1950 e meados dos 1970. Embora o filme seja centrado na relação conturbada do astro do rock com seu obscuro empresário — o “coronel” Parker, interpretado magistralmente por Tom Hanks —, o diretor australiano Baz Luhrmann apostou também na arriscada tarefa de mostrar o lado “político” de Elvis Presley.
Esse foi, a meu ver, o único pecadilho nesse trabalho brilhante que muito certamente faturará alguns Oscars. Pareceu-me que a direção forçou um tanto a mão para mostrar um Elvis muito mais progressista do que de fato ele era. Há dois momentos essenciais da história americana da segunda metade do século 20 que são determinantes para o rumo da vida do rei do rock: a segregação racial no sul dos EUA na década de 1950 e a violência política dos anos 1960. Nestes dois momentos, a biografia cinematográfica de Elvis mereceria maior nuance.
Nascido em uma família de brancos empobrecidos em Tupelo, Mississippi, os Presley moravam em vizinhança habitada por negros de semelhante condição. Essa convivência se mostraria fundamental na formação musical de Elvis que, como se sabe, no início confundia os ouvintes que só o conheciam pelo rádio, acreditando que era um cantor como Little Richard ou Chuck Berry.
Elvis, de fato, era muito próximo dos músicos negros que fariam a legenda da gravadora Sam Records, em Memphis, um polo de atração do soul e do blues, que daria nascimento também ao rock 'n' roll. Ele conversava frequentemente com B.B. King, que o adorava, e tinha verdadeira veneração por Fats Domino. Mas a atitude rebelde de Elvis no início da carreira tinha mais a ver com sua postura sexualmente explosiva do que propriamente com um desafio ao status quo segregacionista. O diretor retrata muito bem a perturbação que “Elvis the Pelvis” causava na moral rígida dos conservadores do sul dos EUA, mas parece exagerado o seu esforço em mostrar que o “branco que cantava e dançava como um negro” era o que mais irritava as autoridades supremacistas do Tennessee.
O fato é que Elvis nunca deu nenhuma declaração de solidariedade clara aos negros que sofriam os horrores da repressão racial no sul dos EUA durante sua ascensão. Seja por sua índole apolítica ou por ser ferozmente policiado pelo seu empresário cão de guarda, o rei do rock somente contribui de forma inconsciente com a luta pela segregação ao levar para a jovem classe média branca a música dos negros, diluindo uma barreira cultural importante no esforço de integração cultural do país.
Outro aspecto que me pareceu um tanto exagerado foi como o diretor do filme apresenta a reação de Elvis à violência política do ano de 1968, na sequência dos atentados que tiraram a vida de Martin Luther King Jr. e Robert Kennedy. O artista é retratado como tendo sido profundamente impactado pelos eventos, que lhe teriam inspirado a emocionada interpretação da belíssima canção “If I Can Dream”. O filme parece sugerir que Elvis compôs a música impactado pelo calor dos acontecimentos. Mas a música não foi composta por ele, pois se trata de uma obra de Walter Earl Brown de 1963, aparentemente inspirado no célebre discurso de Luther King “I have a Dream”, mas que não tinha tido impacto ao ser lançada. Elvis, de fato, deu o tom comovente à interpretação, que faria os EUA descobrirem a canção até então esquecida. É uma liberdade poética admissível em um filme como esse, mas que confere ao biografado uma militância artística pouco crível, especialmente diante de outras posições políticas conhecidas do personagem.
Elvis parecia politicamente conservador em algumas de suas posturas; era muito crítico aos que se opunham à Guerra do Vietnã e algumas fontes contam que ele tinha palavras duras para John Lennon, por sua postura antiguerra quando de sua passagem pelos EUA. O passado de Elvis no Exército exerceu grande influência sobre como ele via as intervenções militares do seu país no contexto da Guerra Fria. Afinal, Elvis passou a ser um admirador de Richard Nixon, com quem se encontrou pessoalmente para uma “photo op”, depois de insistir muito com a assessoria do presidente para que fosse recebido. Há, aliás, um excelente filme que mostra esse episódio e que, embora se trate de uma comédia, é possivelmente um retrato mais fiel da visão de mundo do ídolo ("Elvis &amp; Nixon", de 2016, dirigido por Liza Johnson, com Kevin Spacey impagável no papel do presidente americano).
Seja como for, mesmo com algumas opções narrativas questionáveis, "Elvis" é brilhante no seu conjunto, inclusive por provocar debate e reflexão sobre os sentidos da história recente dos EUA.

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JOTA

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