Pandemia

Edward Hopper, profeta do isolamento social

A melancolia da solidão urbana foi retratada pelo artista norte-americano

Nighthawks, de Edward Hopper. Crédito: Wikimedia Commons

No mundo todo, as cidades estão diferentes; há muito pouco movimento e tudo parece estático. As ruas estão desertas, especialmente à noite. Na semana que passou, precisei ir até uma farmácia depois das vinte e duas horas, em Copacabana, onde moro. Tive que caminhar um bocado até encontrar um estabelecimento aberto. O bairro, cartão postal que não para nunca na sua farra eterna, estava estranhamente escuro e tomado por um silêncio perturbador. Senti medo, não sei bem do quê.

Ao longe, vislumbrei um restaurante que estava aberto, mas com a porta semicerrada, funcionando apenas para entregas. Na sua fachada há uma grande janela de vidro, que despejava alguma luz sobre a calçada inóspita. Aproximei-me e vi um desolado empregado apoiado sobre o balcão, olhando fixamente para o celular. Um entregador uberizado aguardava na porta uma encomenda, fumando um cigarro, com olhar perdido.

Senti-me dentro de uma tela do artista plástico norte-americano Edward Hopper, mais precisamente no seu mais famoso quadro, Nighthawk, que ilustra essa matéria. Hopper, falecido em 1967 aos 84 anos e que andava meio esquecido neste século XXI, agora está circulando muito pelas redes sociais. Suas obras, que frequentemente mostram homens e mulheres isolados melancolicamente na solidão urbana, estão sendo postadas com frequência no Twitter e no Instagram, despertando um inaudito interesse por sua obra.

Mas quem foi esse artista cuja obra ganhou tanta atualidade com a quarentena global e o consequente isolamento social? O que ele anteviu nas noites vazias das cidades da América que nos poderia, ao menos, consolar?

Hopper nasceu em 1882 em Nyack, uma cidadezinha do Estado de Nova Iorque, nos baixos do Rio Hudson, cerca de 30 quilômetros à montante de Manhattan. Seu pai era um merceeiro e a família, conservadora e batista, vivia uma confortável vida de classe média (a casa onde o artista nasceu e cresceu ainda está em pé e hoje é um centro cultural dedicado à sua obra).

Revelando talento para o desenho desde a primeira infância, Hopper decidiu estudar arte pictórica depois do ensino médio na cidade de Nova Iorque, onde foi aluno de William Merrit Chase, um dos maiores introdutores do impressionismo francês nos EUA, que o apresentou às obras de Degas e Manet. Concluídos seus estudos em 1905, o artista arrumou um emprego como ilustrador de revistas comerciais, ocupação que mantinha a contragosto para poder se sustentar. Demitiu-se quinze anos depois e passou a viajar com frequência para a Paris dos loucos anos 1920, a fim de aprimorar-se nas artes plásticas. Encantou-se com as obras de Rembrandt nos museus parisienses e dedicou-se a estudar as técnicas da gravura, que passou a desenvolver nos EUA.

Depois do período francês, de volta ao país natal, ficou em dúvida em retomar a bem-sucedida carreira de ilustrador, investir na gravura ou tentar voos mais altos na pintura. Sua indecisão o levava frequentemente a um estado de depressão e pouca produtividade.

Introspectivo, tímido e conservador, com poucos amigos, Hopper casou já quarentão, em 1924, com a pintora Josephine Nivision, que abandonou a própria carreira para apoiar e incentivar o marido em seus talentos, que percebia como extraordinários. Deu resultado: foi depois das suas núpcias que o ilustrador novaiorquino desabrochou como artista e começou a despertar atenção da crítica.

Ele finalmente encontrou seu caminho sintetizando as influências impressionistas, a luz de Rembrandt, a observação da vívida cena urbana de Paris e, claro, seu particular olhar melancólico e comiserador sobre a condição humana nas grandes cidades. Embora o impressionismo o levasse ao interesse no tema das pessoas comuns, seu estilo acabou se afirmando mais próximo do realismo.

Edward Hopper era também um homem de cultura e devotado aos livros. Seu escritor predileto era o transcendentalista Ralph Waldo Emerson, um dos maiores pensadores americanos do século XIX, que exaltava as potencialidades do individualismo contra as pressões sociais. Emerson foi um dos mentores de Henri David Thoreau, escritor que se isolou do mundo em uma cabana no meio do nada durante dois anos, dois meses e dois dias e relatou a experiência no livro Walden, ícone da literatura norte-americana que também tem sido muito citado neste tempo de quarentena. Dada a sua paixão por Ralph Emerson, é quase certo que Hopper conhecesse Walden. O interesse pela solidão e pelo individualismo foram decisivos na conformação de sua arte, que atingiu seu ponto mais alto nas décadas de 30 e 40 do século XX.

Partindo de um espectro de cores escuras nas cenas noturnas, contrastando-as com bolhas de luz e jogos de sombra, ignorando o movimento das cidades, Hopper nos conduz a um mundo de aparente indiferença e desolação urbana, contra o qual personagens esparsos, elegantes, estáticos e resilientes afirmam sua individualidade, num contraditório mundo de opressão e sedução.

Suas pinturas noturnas parecem ter sofrido bastante influência da atmosfera do cinema noir americano. Hopper sagazmente posiciona o ponto de vista do observador a uma certa distância do objeto principal da imagem, como se ele fosse um voyeur a espiar a cena escondido, apreciando a dignidade de roupas e modos dos personagens em sua solidão urbana. Ele de alguma forma nos convida a olhar a luz acalentadora sobre as sombras frias que dominam a tela.

Sua obra traduz com perfeição a ambivalência da nostalgia, de retorno a um tempo em que as cidades ainda não estavam apinhadas por milhões de habitantes e talvez esse sentimento esteja muito vívido nos dias que correm. Edward Hopper nos ensina que a solidão, apesar de sua dimensão melancólica, pode ser também uma experiência sedutora. Depende de como a encaramos.