Opinião e Análise

Cássio Casagrande

Os drones estão sobre as nossas cabeças e sobre as nossas casas, e talvez nem os estejamos percebendo. Até que ponto eles podem ser usados em investigações criminais ou em procedimentos sancionatórios de natureza administrativa?  A questão está sendo debatida em vários países.
No ano passado, durante o lockdown, autoridades francesas passaram a usar drones em Paris, para verificar quem estava descumprindo as ordens sanitárias que impuseram restrições à livre circulação. Entidades civis de defesa de direitos fundamentais peticionaram ao governo requerendo a suspensão deste tipo de monitoramento, por considerá-lo invasivo à privacidade dos cidadãos.
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Rejeitado inicialmente nas instâncias inferiores da administração, o caso subiu rapidamente ao Conselho de Estado, órgão supremo da jurisdição administrativa francesa, que determinou a imediata suspensão deste tipo de vigilância aérea, por vislumbrar violação a direitos fundamentais.  Embora os drones, neste caso, não estivessem equipados com cartão de memória para registro permanente das imagens, considerou-se que a baixa altitude em que podiam voar (80 metros) permitia aos controladores identificar as pessoas filmadas sem o seu conhecimento, inclusive para outros fins que não o de evitar aglomerações públicas.
Nos EUA, mais precisamente no Estado de Maryland, a polícia de Baltimore desenvolveu a partir de 2016 um programa de uso extensivo de drones para fins de segurança pública e investigação de crimes; porém, tudo foi feito de forma secreta, sem comunicação prévia aos moradores.  Quando o sistema foi revelado pela imprensa, houve uma grande repulsa do público local.
A prefeitura de Baltimore, cidade americana que figura dentre aquelas de maior taxa de criminalidade, insistiu em retomar o programa de vigilância com drones, mas o fez desta feita com diálogo e apoio de comunidades que ficam em áreas perigosas e que demonstraram apoio ao monitoramento aéreo.
Não obstante, a American Civil Liberties Union (ACLU), mais célebre entidade defensora de direitos constitucionais nos EUA, ajuizou uma ação na Justiça Federal, alegando que esse tipo de vigilância é incompatível com as liberdades civis, uma vez que permite ao Estado agir como um “Big Brother” distópico, em que os cidadãos são permanentemente vigiados pelo governo, tenham ou não praticado algum ato ilícito.
O processo ainda está em fase inicial, mas poderá representar uma nova oportunidade para a Suprema Corte revisitar sua jurisprudência a respeito da possibilidade de colheita de provas através de fotografia aérea, sem mandado judicial.  A corte constitucional americana já apreciou ao menos em três ocasiões casos em que investigados suscitaram a nulidade da prova baseada em fotos tiradas de aviões ou helicópteros, tendo decidido em todos (sempre por maioria estreita) que esse tipo de elemento indiciário dispensa prévio mandado de busca (“search warrant”) determinado na Quarta Emenda.
Em 1986, a Suprema Corte reuniu dois casos para julgamento em uma mesma sessão, na intenção de lhes dar solução homogênea. Em California v. Ciraolo, o réu foi condenado por cultivar cannabis em seu quintal, e alegou a nulidade da prova, baseada em fotos aéreas tiradas por um avião da polícia, sem ordem judicial prévia. No precedente Dow Chemical v. United States, a empresa recorrente sustentou que as sanções administrativas que lhe foram impostas pelo órgão de proteção ambiental seriam nulas, pois baseadas em fotografias aéreas da autoridade de fiscalização, também sem prévio mandado judicial.
Nos dois julgados a decisão seguiu a mesma “ratio”: a corte entendeu que os investigados não teriam “expectativa de privacidade” (standard estabelecido no caso Katz v. United States de 1967), já que, nas palavras do Chief Justice Warren Burger, “a Quarta Emenda simplesmente não exige que a polícia, ao percorrer vias aéreas públicas em grande altitude, obtenha um mandado para observar o que é visível a olho nu”.  Ou seja, à medida em que a “paisagem” seria observável por qualquer passageiro de um avião, não haveria razão para se estabelecer uma específica e prévia autorização judicial à polícia.
O argumento fundava-se, também, em uma jurisprudência estabelecida no caso United States v. Causby (1946), em que um proprietário rural vizinho a um aeroporto ajuizou uma ação pedindo que aviões não sobrevoassem a sua propriedade, porque eles perturbavam suas galinhas, enervando-as e impossibilitando-as de chocar os seus ovos. O requerente invocava doutrina antiga da Common Law, conhecida como propriedade ad coelum, ou seja, a ideia de que a fruição dos direitos reais se expande vertical e infinitamente, “até o céu”. Essa doutrina foi então rejeitada expressamente porque a Suprema Corte entendeu que ela era anterior à existência da aviação.
No caso Dow Chemical, em especial, a Suprema Corte também seguiu a doutrina do “open fields”, fixada inicialmente em Hester v. United States (1924) e reafirmada em Oliver v. United States (1984), segundo a qual as autoridades podem certificar o avistamento de elementos de prova em uma propriedade privada sem lhe romper os limites, quando tais elementos se encontram visíveis, “em campo aberto”.
<blockquote class="jota-article__eye">Os fundamentos das decisões que autorizavam fotos aéreas como provas continham, no entanto, evidentes fragilidades e o fato de que ambas tenham sido decididas por apertadas maiorias de cinco votos a quatro é por si só eloquente.</blockquote>
Mesmo sem adentrar ao mérito dos julgamentos, é questionável o próprio fato de que se tenham reunido os dois casos para proferimento de decisões uniformes. California v. Ciraolo cuidava de pessoa física sob investigação penal, com alegação de privacidade sobre o seu domicílio. Dow Chemical v. Unites States tinha como parte uma grande corporação, pessoa jurídica, sob sanção administrativa, com alegação de “privacidade” do terreno da empresa.  Ou seja, dimensões fático-normativas completamente distintas.
E, quanto à linha de argumentação da tese vencedora, o Juiz Lewis F. Powell Jr. observou, com pertinência, a impropriedade de se comparar um sobrevôo comercial ou recreacional com uma expedição aérea cujo propósito deliberado é o de produzir ato investigativo. Segundo ele, alguém que observa casualmente pela janela do avião a paisagem e assim vislumbra aleatoriamente uma propriedade privada não fere a expectativa de privacidade dos proprietários em terra, da mesma forma que ocorre quando uma autoridade o faz com o fim específico de observar uma propriedade determinada onde haveria atividade suspeita.
De qualquer forma, aquela jurisprudência sedimentou-se e foi inclusive reafirmada em 1989, no caso Florida v. Riley, em que um policial se valeu de um helicóptero em baixa altitude para identificar cultivo de cannabis em uma estufa situada dentro dos limites de uma propriedade residencial.
<blockquote class="jota-article__eye">É bastante incerto, no entanto, que toda essa mesma jurisprudência possa ser usada em breve para casos em que elementos de prova sejam baseados em imagens produzidas por drones.</blockquote>
A fotografia por esses leves e ágeis robôs voadores é diferente das tradicionais fotos aéreas, pois os drones podem penetrar em ruas e becos inacessíveis a aeronaves, aproximar-se de todos os andares de um edifício urbano, e por isso podem registrar, através de janelas, o que se passa no interior dos lares.
É muito pouco provável que se possa tratar de forma igual esses elementos fático-normativos tão distintos, o da fotografia aérea tradicional e o das imagens coletadas por drones. Ademais, na última década, a Corte Roberts tem sido bastante refratária a admitir, sem mandado judicial, coleta de elementos de prova por novos instrumentos de tecnologia que se revelam cada vez mais intrusivos.  Em United States v. Jones (2012), a Suprema Corte considerou inconstitucional, por violação à Quarta Emenda, a instalação subreptícia, pela autoridade policial, de GPS em veículo suspeito, que passou a ter o seu trajeto monitorado e seguido. No caso Riley v. California (2014), a corte considerou que o acesso a dados armazenados em um telefone celular de um suspeito só pode ser feito quando autorizado por um mandado de busca e apreensão. E em Carpenter v. United States (2018), prevaleceu o entendimento de que o fornecimento para a polícia de dados de geolocalização de aparelhos celulares, pelas operadoras de telefonia, somente pode ser obtido com ordem judicial.
Se há algo induvidoso é o fato de que a revolução tecnológica que vivenciamos ainda trará muitos desafios ao campo da proteção da privacidade em face da necessária prerrogativa estatal de investigar delitos e infrações administrativas, com instrumentos que, cada vez mais, conferem às autoridades os poderes orwellianos de um Big Brother.
***
A coluna “O Mundo Fora dos Autos” completa nesta semana três anos. Agradeço enormemente aos editores que nesse período têm trabalhado para colocá-la no ar toda segunda-feira, inclusive naqueles dias difíceis em que ela chega “em cima do laço”: Kalleo Coura, Luís Viviani e Daniel Haidar. Aos leitores que a prestigiam com sua audiência, meu muitíssimo obrigado!
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JOTA

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