Opinião e Análise

Cássio Casagrande

Um pouco antes da pandemia, ainda no tempo do ensino presencial, um aluno apareceu em minha aula de Teoria da Constituição na UFF com um daqueles manuais de direito constitucional “simplificado e esquematizado”. Este livro não fazia parte da bibliografia que indiquei. Imediatamente arrebatei-lhe o volume e em um ímpeto desajuizado ameacei atirá-lo pela janela. Detive-me a alguns instantes de consumar o ato tresloucado: estávamos no segundo andar do nosso velho prédio e havia alguns estudantes transitando no pátio abaixo. Apesar de “simplificado e esquematizado”, o exemplar era um tijolaço e calculei que arremessá-lo a esmo poderia ferir e até matar um discente. Seria uma morte em vão – e inglória.
Desaconselho manuais desta espécie porque eles fazem o aluno acreditar na ilusão de que os problemas constitucionais são simples e podem ser resolvidos com fórmulas e soluções mnemônicas. Que o direito constitucional é apenas um problema de “conhecimento textual” e lógica binária. Que é possível tornar-se um expert em constitucionalismo recorrendo a classificações e taxonomias arbitrárias, consagradas apenas pelo fato de que são repetidas acriticamente ao longo do tempo. Que há sempre respostas certas e erradas à disposição das cortes constitucionais. Que existem soluções hermenêuticas universalizáveis à disposição dos intérpretes da Constituição – até mesmo diante de “hard cases” – e que a “proporcionalidade” pode ser reduzida a uma operação silogística, dedutiva-indutiva ou, quem sabe até, matemática. Que a doutrina e os precedentes conferem respeitosa estabilidade científica ao constitucionalismo.
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Infelizmente, a realidade é bem diferente: o direito constitucional é complexo e difícil, pois tem a imodesta pretensão de regular o poder no âmbito do Estado moderno. O conhecimento do texto da Constituição, se por um lado nos oferece um mero ponto de partida, pouco ajuda diante da particularidade e peculiaridade de conflitos reais densos e atravessados por múltiplos interesses e valores, confrontados a normas constitucionais que primam pela subjetividade, abertura e indefinição dos conceitos.
A singularidade de cada experiência constitucional, no espaço e no tempo, torna quase fútil toda tentativa de ordenamento “científico” da disciplina. Não raro, as Cortes constitucionais se deparam com o conceito grego de tragédia: duas soluções possíveis e igualmente ruins. Na análise da jurisprudência, percebe-se que os métodos de interpretação disponíveis, em si precários, são muitas vezes escolhidos caprichosamente para afirmar vieses e preconcepções dos julgadores. As contradições da doutrina e a inconstância da jurisprudência frequentemente desacreditam a ilusão da “palavra final”.
O grande juiz americano Earl Warren, que presidiu a Suprema Corte entre 1953 e 1969, liderando uma revolução constitucional na jurisprudência durante um período político tumultuário na vida daquele país, sintetizou bem a dificuldade dos operadores jurídicos neste campo do direito: “Nossos juízes não são monges nem cientistas, mas participantes da corrente viva da nossa vida constitucional, guiando o direito entre os perigos da rigidez de um lado, e da ausência de formalismo de outro. Nosso sistema não enfrenta dilema teórico, mas um único problema continuado: como aplicar às condições sempre variantes os princípios invariáveis da liberdade”.
Earl Warren captou bem o grave dilema que os problemas constitucionais suscitam: o ajustamento de valores políticos estáticos às experiências humanas dinâmicas e cambiantes. Esse dilema, eu diria, decorre da própria natureza “racionalista” do direito constitucional. O constitucionalismo do século 18 é filho do Iluminismo que em boa hora afirmou que o homem (e não Deus) é senhor do seu próprio destino; e, assim também, as nações onde o liberalismo triunfou buscaram conformar o seu futuro a uma racionalidade idealizada, mas que inevitavelmente se choca com o fato de que o futuro é incerto, imprevisível e incontrolável.
Nós, professores desta nobre disciplina, devemos ser honestos com nossos alunos sobre a natureza limitada e precária do direito constitucional. Em uma atitude de modéstia, devemos informar-lhes claramente que no mais das vezes não há soluções simples nesse campo do conhecimento. Que o mais sábio constitucionalista e o mais ilustrado juiz constitucional frequentemente sofrem terrivelmente com dúvidas sobre o verdadeiro sentido das normas de uma Constituição ou sobre como aplicá-las da melhor forma possível. Que votos vencidos em uma decisão pretérita, então tripudiados pelos partidários da maioria circunstancial, poderão ser os votos vencedores em um julgamento do porvir. Que os votos vencedores de hoje, celebrados com paixão nos dias que correm, talvez sejam motivo de vexame em um futuro não muito distante.
E, sobretudo, que um bom entendimento da matéria, para além do texto esquematizado e simplificado da norma constitucional, depende da compreensão da natureza do Estado, da complexidade das experiências humanas, das incertezas que permeiam o fenômeno do poder e da enorme dificuldade em se estabelecer a “última palavra” a respeito dos dramas e dos traumas da sociedade moderna. Acima de tudo, devemos instilar em nossos estudantes dúvidas e perplexidades, pois o ceticismo é a única atitude possível para um bom estudioso do direito constitucional.

justiça

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JOTA

Um bom professor desta disciplina deve provocar dúvidas e perplexidades nos alunos

Curso de direito constitucional complexo e dificultado

Um bom professor de direito constitucional deve provocar dúvidas e perplexidades nos alunos