Opinião e Análise

Cássio Casagrande

A essa altura, nada que venha de um Ministério comandado pelo inacreditável Abraham Weintraub deveria surpreender. Mesmo assim, causou certo espanto na comunidade acadêmica saber que o professor Benedito Guimarães Aguiar Neto, nomeado para presidir a Capes, defende o ensino em escolas públicas do criacionismo, sob a roupagem de “design inteligente”, conforme noticiado pela <a href="https://www1.folha.uol.com.br/educacao/2020/01/novo-presidente-da-capes-defende-criacionismo-em-contraponto-a-teoria-da-evolucao.shtml" target="_blank" rel="noopener noreferrer">Folha de S. Paulo</a> em 24 de janeiro passado.
O criacionismo e o design inteligente são explicações religiosas de segmentos cristãos para o surgimento da vida e até o momento não há indícios científicos que as justifiquem. Portanto, ensinar em escolas públicas doutrinas baseadas em dogmas de uma religião claramente violaria o princípio constitucional do Estado laico.
Esse debate já foi feito nos Estados Unidos ao longo do século XX e se encontra há muito superado, tendo a Suprema Corte sacramentado o entendimento aqui defendido em Edwards v. Aguillard, de 1987. Não deve passar despercebido que a decisão foi tomada por uma corte cuja maioria era então composta por juízes conservadores indicados pelo Partido Republicano.
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As controvérsias judiciais sobre criacionismo e teoria da evolução, no entanto, começaram muito antes nos Estados Unidos.
<blockquote class="jota-article__eye">Durante a década de 1920, o famoso “Scopes Monkey Trial” foi possivelmente o primeiro evento judiciário naquele país que se transformou em um circo de mídia, galvanizando a audiência nacional nas ondas do rádio, então recentemente popularizado.</blockquote>
Durante uma longa semana, todos os americanos sintonizavam os programas radiofônicos para acompanhar ao vivo o que viria a ser conhecido como o “julgamento do macaco”, que ocorria na cidadezinha de Dayton, num condado perdido nos cafundós do Tennessee (Rhea County).
O professor John Scopes fora denunciado pela promotoria local por ensinar a teoria da evolução em escola pública, o que contrariava uma lei estadual do Tennessee, conhecida como Butler Act, que proibia o ensino das teorias de Darwin em escolas financiadas por dinheiro público.
Ele poderia ser condenado à detenção e a uma multa de cem dólares (cerca de U$ 1.500,00 em dinheiro de hoje). Na verdade, o processo fora deliberadamente provocado por Scopes e alguns de seus amigos na cidade; ele próprio pediu aos seus alunos que o denunciassem e testemunhassem contra ele para abertura de um processo. O objetivo, evidentemente, era chamar a atenção do país para a influência exagerada das associações de cristãos fundamentalistas no interior dos EUA, que estavam fazendo lobby para aprovar leis semelhantes em vários Estados.
A estratégia de Scopes deu certo. Logo o caso foi parar nos noticiários dos grandes jornalões nacionais, que despacharam seus melhores jornalistas para Dayton, com a finalidade de cobrir o bizarro caso. A American Civil Liberties Union (ACLU), maior entidade americana de defesa das liberdades civis protegidas pela Primeira Emenda, passou a apoiar a causa e colaborou para a contratação de um dos mais reputados advogados do país, o lendário Clarence Darrow.
As associações de cristãos fundamentalistas não deixaram por menos e trouxeram para assistir à acusação William Jennings Bryan, então um dos políticos conservadores mais conhecidos dos EUA, notável orador, que tinha disputado a presidência do país três vezes.
O julgamento prometia ser uma batalha de titãs do mundo jurídico.
O Juiz da causa, John T. Raulston, parecia ser claramente parcial em favor dos fundamentalistas, pois iniciou o julgamento puxando uma oração e citando trechos da Bíblia (que repousava sobre sua mesa). Os debates, depoimentos e testemunhos duraram incríveis sete dias, ao final do qual Scopes foi condenado pelo júri a pagar a multa de cem dólares, sem detenção.
<blockquote class="jota-article__eye">O que aparentava ser um triunfo dos cristãos fundamentalistas acabou, na verdade, como uma vitória de Pirro. A cobertura da grande imprensa liberal retratou os defensores da lei do Tennessee com grande deboche, caracterizando-os como o mais perfeito exemplo da ignorância que predominava no Sul atrasado dos EUA.</blockquote>
Destacou-se acima de todos o lendário jornalista e escritor H.L. Mencken, do Baltimore Sun, que com sua verve sarcástica implacável destruiu completamente a credibilidade dos apoiadores do criacionismo. Conforme observa o jornalista Erik Sass, autor de um divertido livro de história popular dos EUA, os cidadãos do Tennessee que apoiavam a Butler Act foram impiedosamente ridicularizados pela mídia nacional como um “rebotalho de caipiras desdentados e tocadores de banjo”.
O Professor Scopes acabou absolvido na segunda instância da Justiça Estadual, devido a uma nulidade processual relativa à decisão do júri. Mas o tribunal manteve a constitucionalidade da norma, o que acabou incentivando a adoção de leis semelhantes em outros estados, especialmente no Sul dos EUA.
Essas leis acabariam sendo derrubadas pela Suprema Corte na segunda metade do século XX.
Em <a href="https://supreme.justia.com/cases/federal/us/393/97/#tab-opinion-1947841" target="_blank" rel="noopener noreferrer">Epperson v. Arkansas, 393 U.S. 97 (1968)</a>, numa decisão unânime de nove votos a zero, os juízes constitucionais americanos declararam a inconstitucionalidade de uma lei do Estado do Arkansas que proibia o ensino da teoria da evolução em escolas públicas.
<blockquote class="jota-article__eye">O precedente mais importante na matéria, no entanto, ocorreu no caso <a href="https://supreme.justia.com/cases/federal/us/482/578/" target="_blank" rel="noopener noreferrer">Edwards v. Aguillard, 482 U.S. 578 (1987)</a>, ocasião em que a Suprema Corte, por sete votos a dois, declarou a inconstitucionalidade de uma lei estadual da Louisiana que obrigava o ensino do criacionismo em escolas públicas sempre que a teoria da evolução fosse ensinada aos alunos.</blockquote>
A corte, de maioria conservadora, como já dito, considerou que a adoção em escolas públicas de teorias baseadas em dogmas de determinadas religiões não é compatível com o princípio de separação entre Estado e Igreja, tal como estipulado na “non-establishment clause” da Primeira Emenda.
E mesmo a teoria do “design inteligente” – uma tentativa de cristãos fundamentalistas de dar ares científicos ao criacionismo – foi repudiada pelos tribunais federais americanos. Em <a href="https://law.justia.com/cases/federal/district-courts/FSupp2/400/707/2414073/" target="_blank" rel="noopener noreferrer">Kitzmiller v. Dover Area School District, 400 Supp 2d 707 (M.D. Pa 2005)</a>, a Justiça Federal na Pennsilvânia considerou inconstitucional decisão do conselho diretor de escola municipal que havia incluído no currículo escolar o ensino do “design inteligente”, por entender que essa teoria não pode ser dissociada do criacionismo.
Essa decisão seguia a linha de outro importante julgamento da Justiça Federal americana, que em decisão do Quinto Circuito declarara a inconstitucionalidade de política municipal de ensino de Tangipahoa, Louisiana, a qual obrigava os professores a ler uma declaração (sob a forma de “disclaimer”) quando ensinassem a teoria da evolução, advertindo os alunos de que as aulas não tinham o propósito de invalidar a versão bíblica ou outras teorias (<a href="https://www.law.cornell.edu/supct/html/99-1625.ZD.html" target="_blank" rel="noopener noreferrer">Freiler v. Tagipahoa Parish Board of Eecucation, 185 F.3d 337 (5th Cir. 1999)</a>).
O grande advogado americano Clarence Darrow, durante a sua defesa do Professor Scopes, foi confrontado pela promotoria, que o acusou de “ridicularizar todos que acreditam na bíblia”. Ele respondeu que sua missão não era a de questionar dogmas religiosos, mas apenas de “evitar que fanáticos e ignorantes controlem a educação dos Estados Unidos.” Ele perdeu o processo, mas felizmente ganhou a causa. Parece incrível que esse debate sobre ensino do criacionismo em escolas públicas possa ser reavivado no Brasil de hoje, quando até os caipiras tocadores de banjo do Tennessee já desistiram dele.

scopes

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JOTA

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