Opinião e Análise

Cássio Casagrande

“Relatos do mundo”, a mais recente produção hollywoodiana protagonizada pelo astro Tom Hanks, foi baseada em um romance de Paulette Jiles e conta uma história bastante singela: por volta de 1868, um ex-soldado confederado descrente da humanidade vê-se, pela força do acaso, moralmente obrigado a encontrar a família de uma menina órfã, que encontra-se perdida no caos demencial do Texas após a Guerra de Secessão. O filme tem produção impecável, fotografia deslumbrante, atores estupendos, mas em algumas passagens peca pela previsibilidade do roteiro: sabemos que nenhum bandido malvadão vai matar o Tom Hanks no filme do Tom Hanks.
De qualquer forma, o filme vale pelos seus bons atributos, mas também merece ser assistido especialmente por todos que gostam de estudar a história constitucional dos EUA. A Constituição americana, escrita na Filadélfia no verão de 1787, frequentemente é festejada como uma das mais sábias do mundo, sobretudo por sua concisão e clarividência na organização do federalismo e do sistema de "checks and balances". Esta louvação — justa na sua medida — por vezes obnubila o fracasso retumbante dos seus framers em outro aspecto fundamental: a manutenção da escravidão, que obstruiu o desenvolvimento da igualdade civil, da cidadania e da democracia ao longo da maior parte do século 19.
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O sistema constitucional americano (isto é, as instituições criadas na Constituição e a sociedade por seu corpo político-jurídico) não foi capaz de resolver o problema da escravidão “dentro das regras do jogo”. Ao contrário, a Suprema Corte dos Estados Unidos, ao proferir o infamante julgamento em Dred Scott v. Sanford (1856), contribuiu para desmontar o precário acordo político erigido em torno do Compromisso do Missouri (1820), atiçando as paixões entre sul e norte, que somente seriam resolvidas pelo clamor das armas, com a Guerra Civil (1861-1865).
Em Dred Scott, a maioria dos juízes da Suprema Corte estabeleceu basicamente que o Congresso não poderia limitar o direito de propriedade dos senhores de escravos, que os afroamericanos, ainda que livres, não eram cidadãos, e que brancos e negros não eram iguais, baseando essa última conclusão em linguagem abertamente racista. Derrotado o sistema escravocrata do Sul pela força dos canhões de Grant e da obstinação de Lincoln, a Constituição precisava ser “consertada”, inclusive para se derrubar todas as premissas de Dred Scott. O Congresso votou — sem a presença de deputados e senadores dos estados derrotados — a 13ª Emenda (que abolia a escravidão), a 14ª Emenda (que afirmava o critério de jus soli para a cidadania, estabelecia o princípio da igual proteção das leis e do devido processo legal) e a 15ª Emenda (que estabeleceu o direito de voto dos negros).
O Congresso impôs aos estados que somente poderiam retornar à União, terem suas dívidas absorvidas e retomar sua representação congressual caso ratificassem as três emendas (procedimento necessário de acordo com o sistema americano), o que, vamos e venhamos, era mais um ato de força dos vitoriosos do que propriamente a obediência a um rito procedimental. Junte-se a isso a humilhação da derrota e a ocupação militar dos soldados do norte e tem-se o caldo de profundo ressentimento que movia os habitantes do Texas, que além de tudo vivia uma colonização caótica, pois havia sido recém-incorporado após a guerra de 1848 contra o México.
Nesse contexto conturbado, Hanks interpreta um ex-capitão do exército confederado, agora aposentado, que vaga de condado em condado, lendo notícias de jornais de cidades maiores para um público desesperado por informações, em troca de alguns tostões. Quando traz os relatos de ações do governo federal, as audiências reagem furiosas, mostrando como o fim da guerra deixou feridas abertas que durariam muito tempo. Particularmente, a reação apaixonada e violenta diante do reconhecimento de cidadania aos negros anuncia o que viria adiante: os “Black Codes” e as leis “Jim Crow”, que plantariam a árvore venenosa da segregação racial por longas décadas. O personagem de Hanks sabe que a guerra foi um banho de sangue inútil em torno de uma causa sem futuro, mas não é o que pensa a maioria dos seus contemporâneos no Texas.
Outro aspecto dramático da história constitucional americana é bem retratado no filme: o triste destino dos indígenas que se veem na encruzilhada das disputas entre os estados que querem promover a ocupação de suas terras e a União sem recursos ou vontade para protegê-los. E, permeando todos esses conflitos, surge a modernidade que se anuncia: ferrovias e imigração da Europa continental, fonte de novas disputas constitucionais que assombrarão a Suprema Corte na virada do século.
“Relatos do Mundo” nos recorda que a Constituição da Filadélfia, escrita em punhos de renda pelos Founding Fathers em 1787, falhou miseravelmente em muitos aspectos e somente sobreviveu porque foi reescrita e imposta com sangue e fogo, através das Emendas da Reconstrução. É um bom filme, além de tudo, para se refletir como as teorias de “poder constituinte derivado” não fazem muito sentido diante da realidade em momentos traumáticos da sociedade política.

Constituição EUA

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JOTA

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