Opinião e Análise

Cássio Casagrande

Se você é um profissional do Direito e algum dia estiver de passagem por Washington, não pode deixar de assistir a uma sessão da Suprema Corte dos EUA. As sessões públicas da corte constitucional mais famosa do mundo não são televisionadas, filmadas e nem mesmo fotografadas, de modo que ir até o seu plenário é a única forma de ver como elas transcorrem. Em compensação, visitar a Suprema Corte é muito mais fácil do que se pode imaginar.  Já estive lá algumas vezes e vou relatar ao leitor do JOTA essa interessante, curiosa e – por que não? – divertida experiência, contando como foi a minha primeira visita, em maio de 2016.
Eu imaginava que visitar o prédio da Suprema Corte e assistir a uma de suas célebres sessões seria um verdadeiro inferno burocrático – especialmente em razão das medidas de segurança cada vez mais duras que os órgãos públicos federais dos EUA adotam em razão do terrorismo. Pensei que talvez fosse necessário apresentar documentos, cadastrar-se no site da instituição e justificar o motivo da visita.  Mas nada disto.  Basta entrar pela porta (a entrada do público se dá pelo acesso lateral, à esquerda, sob as famosas escadarias de mármore), passar por um detector de metais (como em qualquer prédio público ou museu de Washington) e entrar em uma fila. Não é necessário sequer exibir qualquer documento. É realmente notável o quão acessível é o ingresso ao edifício da mais alta corte dos Estados Unidos e como é simples e tranquilo presenciar as suas sessões públicas.
<ul class="jota-article__internal-links">
<li>+JOTA: <a href="https://www.jota.info/assine">Assine o JOTA e não deixe de ler nenhum destaque! 
</a></li>
</ul>
A sessão a que compareci estava marcada para as dez, mas é recomendável chegar às nove, quando o prédio abre ao público.  Isto porque os lugares são limitados ao número de assentos do plenário (trezentos), e se observa estritamente a ordem de chegada.  Nos dias de julgamentos controversos ou que atraem a atenção da mídia (quando estão em pauta questões relativas a aborto, pena de morte, direitos de minorias, etc.), as filas começam a se formar muito antes das nove, do lado de fora do prédio.  Não era o caso da sessão em que estive presente, que, como contarei mais adiante, julgaria um caso relativamente banal de direito administrativo, cuja sorte não despertava muita atenção do público americano. Há duas filas para acessar o salão de julgamentos: a da direita para quem quer assistir à sessão inteira (normalmente estudantes de direito, advogados e professores) e da esquerda, para quem quer dar uma espiadela e logo cair fora (em geral os turistas).
Aliás, quem deseja ir até a Suprema Corte dos EUA para assistir a uma de suas sessões deve, antes, precaver-se e verificar se de fato haverá sessão no dia programado para a visita.  Evidentemente, a Suprema Corte não funciona o ano todo – o exercício judiciário (term) se inicia em princípios de outubro e conclui-se no último dia de junho do ano subsequente, quando começa o recesso de verão. Há, também, pausas em semanas de feriados. Além disto, como é de se imaginar, não são realizadas sessões todos os dias (ordinariamente, as reuniões públicas ocorrem às segundas, terças e quartas nas duas primeiras semanas de cada mês, em geral pela manhã; sessões extraordinárias podem ser convocadas). <a href="https://www.supremecourt.gov/oral_arguments/calendarsandlists.aspx">Os dias de sessões estão claramente indicados no site da instituição</a>.
Antes de comparecer à Suprema Corte eu havia procurado no seu site <a href="https://www.supremecourt.gov/visiting/visitorsguidetooralargument.aspx">informações sobre as regras da visita</a> e exigência de indumentária adequada, pois nosso STF condiciona o ingresso à sala de sessões ao traje social (com a exceção dos silvícolas, me parece). Mas não havia lá nada sobre o decorum.  Bem, como eu havia esquecido de trazer uma gravata na mala, vesti uma calça e camisa social e mais um paletó e achei que isto seria suficiente. Fui um dos primeiros a chegar na fila, mas havia já na minha frente sete ou dez pessoas e estavam vestidas mais ou menos como eu, alguns com gravata, outros sem, e até mesmo outros de calça jeans. Então, fiquei tranquilo. Logo depois, chegou uma excursão de estudantes secundaristas. Era o último dia de maio, portanto o fim do ano letivo nos EUA, quando hordas de estudantes ensandecidos de todos os cantos do país vão até Washington fazer um "turismo cívico", para conhecer os principais prédios públicos da capital e os seus magníficos museus e monumentos. Este grupo vinha de uma High School do Arkansas, pelo que vi dos seus nada discretos bonés e camisetas. Estava um calor dos diabos em Washington e havia muitos de bermuda, garotas com minissaias, meninos de camiseta regata, tênis de corrida e outros até em chinelos de dedo (notei inclusive que as nossas “Havaianas” também são populares no Arkansas). O professor que os acompanhava estava irritado com a bagunça que eles faziam na fila e de vez em quando um segurança aparecia para pedir silêncio, informando-lhes que havia pessoas trabalhando nas salas ao lado.  Confesso que pensei: estes caipiras do Arkansas vão ser barrados, não é possível que vão deixá-los ingressar no plenário da Suprema Corte vestidos deste jeito.  Pois, para meu espanto, todos entraram tranquilamente, como se estivessem visitando um parque da Disney (talvez eu é que estivesse sendo caipira...)
Depois que as filas estão formadas e completas, cerca de vinte minutos antes do início da sessão, os servidores da segurança conduzem o público pelas belíssimas escadas internas de mármore até o segundo nível, onde está localizado o plenário da Suprema Corte.  Não é permitido entrar com celular ou máquina fotográfica na sala de julgamento, e estes equipamentos devem ser depositados em um armário (pago, 25 cents, então não esqueça de levar um quarter, pois as máquinas automáticas só aceitam estas moedas). Eu precisava guardar meu celular e uma pequena câmera fotográfica. Para meu azar, desavisadamente eu não tinha um quarter no bolso. Vi-me na situação de ter que pedir a moeda a um desconhecido, como se eu fosse um mendigo esmolando dentro do prédio da Suprema Corte. Escolhi ao acaso um americano que me pareceu o menos sovina de todos ali presentes (é difícil encontrar um americano que despreze as suas moedas, pois às vezes tem-se a impressão de que eles podem sair no tapa por causa de um centavo). Por sorte, o sujeito que escolhi não era americano, mas polonês e ele me atirou a moeda com um sentimento de superioridade. Exatamente para verificar se ninguém está com um celular escondido, há um segundo detector de metais no saguão que dá acesso à sala de sessões, mas a revista é rápida e simples, não é preciso tirar os sapatos como nos aeroportos.
Antes que os juízes ingressassem no plenário, um funcionário do tribunal passa orientações: quando ele levantar os braços e o oficial da corte disser oyez! ("escutem"; "atenção", assim mesmo no francês arcaico) – no momento justo que antecede a aparição dos juízes –, todos devem postar-se em pé e somente podem sentar-se depois que os juízes tomam seus assentos, quando ele então abaixa os braços. E assim tudo foi feito, no mais tumular silêncio – inclusive dos ruidosos adolescentes do Arkansas<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>.
Durante o exercício do ano judiciário, há basicamente dois tipos de sessões: de arguição (arguing) e de anúncio do julgamento.  Mas há sessões em que as duas coisas se sucedem. As mais interessantes são, é claro, as sessões de arguição, que nós chamaríamos de sustentação oral – embora não seja exatamente a mesma coisa.  Os advogados que tiveram os recursos (writ of certiorari) admitidos apresentam suas razões e são arguidos pelos juízes.  Ou seja, ao contrário da nossa sustentação oral, que tem natureza de monólogo, na Suprema Corte ocorrem debates entre os advogados e os juízes. Os magistrados interrompem com frequência a exposição do advogado, para pedir esclarecimentos, apontar incongruências e contradições, criticar argumentos utilizados ou perguntar o que bem entenderem. Quase todos os atuais juízes são bastante ativos neste papel; a exceção é o juiz <a href="https://www.nytimes.com/2016/03/01/us/politics/supreme-court-clarence-thomas.html?mcubz=1">Clarence Thomas, que mantem silêncio sepulcral e ar de enfado há muitos anos</a>.
Já nas sessões em que se anuncia o resultado de um julgamento, o que ocorre na verdade é apenas a divulgação pública dos termos da decisão, já que o caso em si foi discutido e votado dias antes, em sessão secreta na famosa conference room.  A decisão (ou um extrato dela, se for muito longa) é lida pelo juiz que foi designado para redigi-la em nome da maioria, ou de toda a corte em caso de unanimidade (pois no sistema americano não há um relator previamente apontado). Os juízes que eventualmente ficaram vencidos podem neste momento ler o seu voto divergente, mas isto rarissimamente ocorre – apenas quando em um caso mais relevante ou rumoroso os juízes da minoria querem marcar posição e chamar atenção do público.  Na sessão que presenciei, o Presidente da Suprema Corte, John Roberts, havia sido ele próprio o redator da decisão unânime ali anunciada – <a href="https://www.supremecourt.gov/opinions/15pdf/15-290_6k37.pdf">U. S. Army Corps of Engineers v. Hawkes Co., Inc. , 578, U.S. ___(2016)</a>.  O caso, embora aparentasse ser complexo, na verdade tratava de uma questão relativamente simples sobre revisão judicial dos atos administrativos. O U.S. Army Corps of Engineers é uma agência federal responsável por fiscalizar atividades econômicas que afetam os recursos hídricos federais. A Hawkes Co. Inc é uma empresa que pretendia explorar turfa na bacia do Rio Vermelho do Norte, em Minnesota, e que dependia da liberação de um laudo ambiental daquela agência federal para iniciar sua produção.  Em geral, neste tipo de situação, aquele que se sentir prejudicado pela ação estatal só pode ir a juízo quando totalmente exaurida a atividade administrativa. Ocorre que a empresa privada alegava que nesta hipótese a ação da agência estava extrapolando o tempo razoável e exigindo laudos que demandavam perícias em valores astronômicos. A Suprema Corte entendeu que nesta hipótese, excepcionalmente, o judiciário poderia conhecer da questão, mesmo que ainda não exaurido o processo administrativo. Anunciada a decisão, minutos depois cópias impressas estão disponíveis a qualquer interessado em uma sala do andar térreo.  Por trivial que o caso possa parecer, ele foi <a href="https://www.washingtonpost.com/news/volokh-conspiracy/wp/2016/05/31/a-small-but-significant-victory-for-landowners-at-the-supreme-court/?utm_term=.07d75eea5b22">noticiado com razoável destaque na edição do dia seguinte do Washington Post</a>, com uma reportagem levemente crítica à decisão, por representar uma brecha na legislação ambiental.
Pude notar, durante o curso da sessão, que o presidente da corte, o conservador John Roberts, é muito cordato e respeitoso com todos, tem grande carisma e um notável bom humor. Durante a leitura da decisão anunciada naquele dia, encaixou algumas blagues espirituosas sobre a relação entre a turfa, o uísque e o golf. Percebe-se que é um homem muito talentoso e que adora o seu trabalho.
Além da leitura da decisão do caso acima referido, para minha sorte esta era também a única sessão anual em que ocorre a cerimônia de juramento dos advogados admitidos para atuar perante a Corte.  Diferentemente do Brasil, onde qualquer advogado com registro na OAB pode atuar perante todos os tribunais e até mesmo no Supremo, nos sistemas de Common Law exige-se uma "admissão" prévia aos tribunais em que se pretende advogar, para a qual são exigidos alguns requisitos, como experiência ou tempo de prática jurídica, atestado de bons antecedentes ou referências.  <a href="https://www.supremecourt.gov/bar/barinstructions.pdf">No caso específico da Suprema Corte dos EUA</a>, exige-se que o advogado já tenha sido admitido perante um tribunal inferior por pelo menos três anos, que não tenha faltas disciplinares no registro da Ordem dos Advogados (Bar Association), que apresente uma carta de recomendação de alguma autoridade judicial de seu estado e que tenha sua proposta de admissão referendada por dois advogados que já tenham sido autorizados a atuar na Suprema Corte.  Ultrapassadas essas barreiras, se desejar, o advogado pode requerer que seu juramento seja feito em cerimônia na sessão pública da Suprema Corte (mediante uma taxa de 200 dólares...), presidida pelo Chief Justice.  Então, segue-se o ritual a que assisti.  O advogado que já é membro do quadro habilitado a atuar na Suprema Corte e que está patrocinando o postulante, levanta-se e fala algo parecido com isto: "Como representante da Ordem dos Advogados do Alabama, asseguro que o candidato fulano de tal está qualificado para atuar perante a Suprema Corte".  E logo a seguir o candidato, sob o beneplácito do presidente da corte, faz um juramento solene de atuar corretamente e de acordo com a lei, como também de defender a Constituição dos Estados Unidos. E assim vai seguindo a cerimônia, estado por estado, em ordem alfabética. No começo é interessante, mas como há cinquenta estados nos EUA, o leitor pode imaginar que logo a coisa se transforma numa lenga-lenga enfadonha e interminável. Nesta sessão do ano retrasado havia postulantes de uns 40 estados e eu quase dormi antes de chegar na vez da Califórnia.
Este é um momento importante na carreira do advogado americano: eles vestem o melhor terno e levam para a cerimônia de juramento a esposa e a filharada (há um lugar especial reservado no plenário para eles).  Encerrada a sessão, ficam posando para fotos na frente das escadarias e colunas de mármore do prédio com os familiares, amigos e patronos. Mas a verdade dos fatos é que a maioria esmagadora destes advogados jamais terá uma única oportunidade sequer em toda a sua vida profissional de defender uma causa perante a Suprema Corte, que só decide, em média, oitenta casos por ano.  Então, por que, afinal, este empenho (e gasto) em se associar ao quadro de advogados autorizados a atuar na corte constitucional?   Simples, pelo status, pois assim, por exemplo, o advogado de Indianola, Mississipi, irá pendurar na parede de seu escritório o certificado emitido pela Suprema Corte, declarando que está autorizado a atual perante aquele tribunal e isso certamente irá impressionar os seus potenciais e incautos clientes do interior, que ingenuamente poderão acreditar que aquele competente advogado poderá levar sua causa até a mais alta corte do país...
Quando não há sessão, é possível (e altamente recomendável) visitar o saguão térreo do prédio, no qual há uma mostra permanente, elaborada com maestria, sobre a história da Suprema Corte. Neste mesmo piso também há uma livraria com obras sobre a Suprema Corte e o direito constitucional americano, que também oferece souvenires. Todos os dias também, no começo da tarde, servidores fazem uma breve apresentação, na própria sala de sessões, sobre o funcionamento da corte. Mas as informações são demasiadamente básicas e não vale a pena ficar ali para ouvir as perguntas desatinadas do público leigo americano, que indaga coisas meio estúpidas, como "onde se sentam os membros do júri?"
Algo que surpreende o visitante é o porte relativamente pequeno da Suprema Corte, não só em seu espaço interno como de movimentação de funcionários – apenas cerca de 400 pessoas trabalham ali, entre juízes, assessores, servidores, estagiários e terceirizados (no STF são quase quatro mil...). O tribunal não tem edifícios anexos, mas os gabinetes dos juízes constitucionais são enormes e decorados com muita elegância – evidentemente não fui convidado a entrar em nenhum deles, vi isto em um documentário da C-SPAN. A biblioteca também é magnífica, uma das mais lindas dos Estados Unidos, mas lamentavelmente só é acessível aos juízes e servidores, como também aos advogados admitidos a praticar perante a corte.
Ainda no saguão do piso térreo há uma cantina grande, para refeições ligeiras, que qualquer um que esteja no prédio pode frequentar, inclusive os visitantes.  Uma curiosidade é que o responsável por sua administração é sempre o juiz mais novo da casa (na Suprema Corte, cada um dos nove juízes é responsável pela administração de um departamento do órgão).  A cantina tinha a má reputação de servir comida ruim, ao ponto de <a href="http://www.washingtonpost.com/wp-dyn/content/article/2010/07/13/AR2010071301514.html">um crítico de gastronomia do Washington Post</a> ter declarado que as suas refeições deveriam ser julgadas inconstitucionais. Como este é o único refeitório em todo o prédio, diz-se que não é raro ver por ali um juiz da Suprema Corte tomando um café com donnuts.  Depois da sessão, fui até lá e sentei-me por algum tempo para beber aquele cafezinho aguado que os americanos apreciam, na esperança de quem sabe tirar um selfie com as simpáticas juízas Ruth Bader Ginsburg ou Sonia Sotomayor; mas não tive sorte, pois só passaram por ali alguns jovens estagiários com cara de nerd.
Encerrada a visita, a saída obrigatoriamente se dá pelo primeiro andar, através das imensas portas por detrás da colunata, que levam o visitante a descer pelas famosas escadarias de mármore do prédio, com uma bela vista do Capitólio.
&nbsp;
-----------------------------------------
<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> A proclamação integral que anuncia o início da sessão pública na Suprema Corte, bradada pelo oficial da corte é a seguinte: "Os Honoráveis, Presidente e membros da Suprema Corte dos Estados Unidos. Oyez! Oyez! Oyez! Todas as pessoas que tiverem assuntos a tratar perante a Suprema Corte dos Estados Unidos são requisitadas a se aproximar e conceder sua atenção, pois a Corte está agora tomando assento.  Deus salve os Estados Unidos e esta honorável Corte" ("The Honorable, the Chief Justice and the Associate Justices of the Supreme Court of the United States. Oyez! Oyez! Oyez! All persons having business before the Honorable, the Supreme Court of the United States, are admonished to draw near and give their attention, for the Court is now sitting. God save the United States and this Honorable Court").

6931213037_73311d0c21_b

https://images.jota.info/wp-content/uploads/2021/09/copy-of-jota-logo-high-cmyk.jpeg

JOTA

Visitar a corte constitucional americana é mais fácil do que se imagina

Como assistir a uma sessão da Suprema Corte dos EUA

Visitar a corte constitucional americana é mais fácil do que se imagina