Opinião e Análise

Cássio Casagrande

No dia 15 de outubro de 1872, Virginia Minor, casada, 48 anos de idade, compareceu a uma repartição pública encarregada do registrado eleitoral na cidade de Saint Louis, Missouri. Ela foi atendida pela Senhorita Reese Happersett, oficial do governo estadual responsável pelo órgão. Virginia informou à servidora que ali comparecia para requerer o seu registro como eleitora, a fim de participar das próximas eleições presidenciais. Reese ficou perplexa com o pedido, pois a Constituição do Estado do Missouri restringia o direito de voto aos homens. Ela indeferiu o pedido.
Com a assistência de seu marido e advogado, Francis Minor, Virginia levou o caso à justiça estadual, sustentando a inconstitucionalidade das cláusulas da Constituição do Estado de Missouri que reconheciam apenas ao sexo masculino o direito de voto. De acordo com a tese dos Minor, a norma da Constituição estadual estava em desacordo com a Décima Quarta Emenda, aprovada depois do fim da Guerra Civil para conferir direito de cidadania aos negros libertos. Eles também argumentaram que o direito de voto era inerente à cidadania e sendo a recorrente cidadã dos Estados Unidos, o direito de votar não poderia ser negado.
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A Suprema Corte de Missouri manteve a decisão administrativa de Happersett, estabelecendo ser “prática quase universal de todos os Estados, desde a adoção da Constituição até o presente” restringir o direito de voto apenas aos homens. Os Minors decidiram então recorrer até a Suprema Corte, em Washington.
[caption id="attachment_268600" align="aligncenter" width="381"]<a href="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2020/08/virginia-louisa-minor.jpg"><img class="wp-image-268600 size-full" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2020/08/virginia-louisa-minor.jpg" alt="" width="381" height="450" /></a> Virginia Minor, cujas tentativas de se registrar como eleitor deram origem ao caso Minor v. Happersett. Wikimedia commons[/caption]
Em novembro daquele mesmo ano de 1872, nas eleições presidenciais, Susan B. Anthony desafiou fiscais de uma seção eleitoral em Rochester, Nova Iorque, e depositou seu voto em uma urna, sendo presa em flagrante e levada ao tribunal do júri. Durante a instrução processual, indagada pelo juiz se tinha algo a declarar, ela pronunciou um contundente discurso político, afirmando:
<blockquote class="jota-article__quote">
“esse é um ultraje contra meus direitos de cidadã (...) vocês estão pisoteando os mais vitais princípios de nosso governo. Meus direitos naturais, meus direitos civis, meus direitos políticos, meus direitos judiciais estão sendo todos ignorados”.
</blockquote>
O belo pronunciamento de Anthony de nada adiantou, pois ela foi condenada a pagar uma multa de cem dólares (que se recusou a pagar, correndo o risco de prisão, que acabou não ocorrendo).
[caption id="attachment_268604" align="aligncenter" width="401"]<a href="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2020/08/susan.png"><img class="wp-image-268604 size-full" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2020/08/susan.png" alt="" width="401" height="447" /></a> Susan B. Anthony[/caption]
Na mesma época, na vizinha Nova Jersey, um grupo de militantes lideradas por Lucy Stone (a primeira mulher a colar grau numa universidade naquele estado), havia processado o governo estadual perante a Justiça Federal, sustentando que o seu direito de voto estava sendo negado, mas a decisão não foi nada animadora, pois os juízes da corte de apelações concluíram que “o efeito prático desse suposto direito seria destrutivo para a civilização e isso é fundamental para se concluir que esse direito não existe”.
As ações de Virginia Minor, Susan Anthony e Lucy Stone eram concatenadas; o movimento feminista dos EUA na segunda metade do século XIX estava organizado em duas grandes associações civis, fundadas em 1869, a National Woman Suffrage Association (NWSA), liderada por Susan Anthony, e a American Woman Suffrage Association (AWSA), comandada por Lucy Stone. A NWSA adotou a estratégia conhecida como “New Departure”, que consistia em forçar casos judiciais para obter uma vitória nos tribunais que declarasse a existência de um direito constitucional de voto das mulheres com base na Décima Quarta Emenda.
<blockquote class="jota-article__eye">Mas a estratégia de judicialização frustrou-se quando o caso de Virginia Minor finalmente foi a julgamento na Suprema Corte, em Washington, a qual manteve a decisão da justiça estadual do Missouri.</blockquote>
Os Justices, embora admitindo que Virginia Minor era uma cidadã dos Estados Unidos, declararam que “os privilégios de cidadania não incluem o direito de voto”, afirmando o entendimento de que a Constituição federal não confere esse direito a ninguém, pois essa prerrogativa seria de competência exclusiva das Constituições estaduais (Minor v. Happersett, 1875). Essa decisão destruiu e pôs fim à estratégia “New Departure” e não deixou outra alternativa ao movimento feminista se não partir para o mais difícil: mudar a Constituição.
Susan Anthony conseguiu convencer em 1878 o seu amigo senador (pela Califórnia) Aaron Augustus Sargent a propor aquela que viria se tornar a Décima Nona Emenda à Constituição dos Estados Unidos. O caminho foi penoso, árduo e longo. As duas grandes associações que lutavam pelo sufrágio feminino tiveram que superar suas divergências políticas até fundirem-se na National American Women Suffrage Association, em 1890.
<ul class="jota-article__internal-links">
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A união de forças era necessária para combater aqueles que se opunham ao sufrágio feminino e que não se restringiam aos homens conservadores: indústrias de bebidas e destilarias acreditavam que dar poder político às mulheres levaria à proibição do comércio de bebidas alcoólicas (e eles não estavam errados, pois muitas sufragistas eram também militantes pró-temperança e a Lei Seca acabaria sendo aprovada mais tarde com amplo apoio feminino); indústrias têxteis, que dependiam fortemente da mão de obra feminina, viam (também com certa dose de fundamento) na luta pelo sufrágio uma mobilização trabalhista, já que legisladores simpáticos à melhoria de condições das trabalhadoras e contrários ao trabalho infantil poderiam ser eleitos e por isso o movimento era constantemente acusado de socialismo; religiosos apontavam que o sufrágio e a participação política das mulheres levaria à dissolução familiar. A oposição era tão grande que esses segmentos fundaram a “National Association Opposed to Woman Suffregage”.
A Emenda foi levada a plenário no Congresso por diversas vezes, sendo sempre rejeitada na última década do século XIX e na primeira do século XX.
<blockquote class="jota-article__eye">Foi a partir de 1910 que o movimento sufragista nos EUA ganhou impulso, com o surgimento de novas lideranças, como Alice Paul (uma afro-americana), fundadora do National Woman’s Party, que conseguiu organizar grandes mobilizações e marchas, como a que reuniu centenas de milhares de mulheres na véspera da posse de Woodrow Wilson em 1913.</blockquote>
[caption id="attachment_268599" align="aligncenter" width="717"]<a href="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2020/08/alice-paul-cph-3a38295.jpg"><img class="wp-image-268599 size-large" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2020/08/alice-paul-cph-3a38295-717x1024.jpg" alt="" width="717" height="1024" /></a> Alice Paul, sufragista americana, Wikimedia Commons[/caption]
Wilson, que inicialmente era contrário à causa, converter-se-ia a ela no final do seu segundo mandato, apoio que acabaria sendo essencial.
Importante também foi o fato de que a partir de 1910 vários Estados (a maioria na Costa Oeste) mudaram suas Constituições ou alteraram leis locais permitindo o voto feminino, levando a paradoxal situação de que em 1916 foi eleita pelo Estado de Montana a primeira congressista mulher dos EUA – Jeannette Pickering Rankin, embora nem todas as mulheres americanas pudessem votar.
A adoção do voto feminino no Estado de Nova Iorque, em 1917, acabou sendo um divisor de águas que levou ao convencimento dos congressistas, que depois de muitas negativas (inclusive em setembro de 1918 e fevereiro de 1919), acabou finalmente aprovado nas duas casas legislativas em junho 1919.
<blockquote class="jota-article__eye">Faltava, ainda, a ratificação em pelo menos 4/5 dos Estados, em votações separadas, o que só ocorreu quando o Estado do Tennessee aprovou a Emenda no dia 18 de agosto de 1920, considerada a data oficial de entrada em vigor da norma constitucional.</blockquote>
Virginia Minor, Susan Anthony e Lucy Stone perderam suas batalhas judiciais, mas a sua longa guerra constitucional pelo sufrágio feminino seria vencida quarenta e cinco anos depois, quando todas já haviam falecido.
O centenário da consagração do direito de voto das mulheres nos EUA é uma oportunidade para se entender como as grandes mudanças constitucionais muitas vezes só ocorrem no campo da política, especialmente quando o judiciário atua como uma força conservadora, disposta a deter a marcha da História.

Suffragists_Parade_Down_Fifth_Avenue,_1917

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JOTA

Judiciário conservador pode retardar a marcha da história

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