Opinião e Análise

Cássio Casagrande

<a href="https://www.jota.info/jotinhas/suprema-corte-dos-eua-anula-direito-constitucional-ao-aborto-24062022">A revogação do precedente Roe v. Wade (1973) nos Estados Unidos, que reconhecia a possibilidade de interrupção da gravidez como um direito constitucional baseado no conceito de privacidade</a>, vem suscitando enormes questionamentos na comunidade jurídica americana, tanto do ponto de vista substancial como procedimental. Ou seja, diversos juristas acreditam que a Suprema Corte errou não apenas ao negar o aborto como um direito constitucional das mulheres, mas, sobretudo, ao ignorar o sistema de precedentes, que é a pedra fundamental da tradição jurídica da Common Law.
Quem lê o voto do juiz Samuel Alito em Dobbs v. Jackson Women’s Health (2022), redigido em nome da maioria, percebe claramente que ele está dividido em duas partes distintas. Na primeira, ele se dedica a desconstruir as premissas substanciais da fundamentação do caso Roe, afirmando, na sua concepção “originalista”, que a Constituição da Filadélfia não trata do aborto, que não existe uma cláusula de privacidade no texto constitucional e que a cláusula do devido processo legal da Décima Quarta Emenda, por si só, não poderia ser invocada para garantir o direito à interrupção da gestação. Em razão desta interpretação, defende que a matéria deve ser regulada pelos legisladores, por se tratar de decisão da esfera política. A conclusão é que a lei estadual do Mississippi, que restringiu o aborto naquele estado, é constitucional. Neste provimento, o juiz Alito teve a adesão dos colegas Clarence Thomas, Neil Gorsuch, Brett Kavanaugh, Amy Barrett e do presidente John Roberts. Ficaram vencidos os juízes liberais Stephen Breyer, Sonia Sotomayor e Elena Kagan.
Seguindo adiante no seu voto, em sua segunda parte, Alito declara de forma expressa que a Corte deve revogar o precedente Roe v. Wade, a fim de que ele deixasse de ser um precedente vinculante, como ocorre no sistema stare decisis da Common Law. Observe-se, neste ponto, que isso não era necessário em relação à constitucionalidade da Lei do Mississippi. A Corte poderia ter mantido o precedente Roe, mas aumentado o espaço de regulação do aborto aos estados, o que afetaria no máximo o precedente Planned Parenthood v. Caseu (1992), o qual havia criado o parâmetro “viabilidade do feto” como critério para conter a legislação estadual restritiva do direito ao aborto. Esse foi, aliás, o sentido do voto convergente do presidente, juiz Roberts, que votou pela constitucionalidade da legislação questionada de Mississippi, mas foi contrário à revogação do precedente Roe. Por isso, o resultado da constitucionalidade da lei foi de 6 votos a 3, mas o placar pela revogação do precedente foi de 5 a 4.
E quais foram as razões de Alito para revogar Roe? É óbvio que em qualquer sistema de precedentes, o dogma da estabilidade jurisprudencial não pode ser absoluto. A história mostra que cortes de Justiça erram (e não raro erram feio) e que esses erros precisam ser corrigidos por cortes posteriores. Além disso, todo e qualquer julgamento é feito sob a luz do presente, e o presente é volátil.
Concepções de vida, circunstâncias materiais, relações sociais mudam lentamente, e a jurisprudência relacionada a elas envelhece e deixa de fazer sentido. É por isso que o sistema jurídico da Common Law possui “válvulas de escape”, pelas quais decisões do passado podem ser revistas e alteradas (fenômeno conhecido como “overrruling”). Nessas situações abre-se mão da estabilidade jurisprudencial porque a aplicação do precedente em si passa a ser fator causador de instabilidade.
Portanto, ao revogar um precedente, a Corte precisa justificar por que o faz, uma vez que a observância à jurisprudência é uma forma de freio ou autocontenção ao poder daqueles que integram o Judiciário. Essa justificação, portanto, não é uma mera construção jurídica, mas sim uma explicação necessária a fundamentar o exercício de um poder político, que é o de alterar “o que está decidido há muito tempo pelo Judiciário” (stare decisis).
Alito certamente sabia que revogar Roe não seria algo simples, especialmente porque os três juízes indicados por Trump que aderiram ao seu voto haviam dito em suas sabatinas que aquele precedente era “the law of the land”, e deixaram transparecer de forma bastante clara que iriam observá-lo. Assim, o justice autor do voto da maioria, em uma argumentação atrevida, preferiu demonstrar que o julgamento Roe já estaria errado desde o momento em que a decisão foi proferida. Ou seja, ele não argumentou que o precedente “envelheceu”, mas que houve um erro original da Corte, que precisaria ser corrigido.
Para tanto, ele fez uma analogia com outro precedente que é caro aos liberais: “Da mesma forma que a infamante decisão no caso Plessy v. Ferguson, Roe estava flagrantemente errado e em rota de colisão com a Constituição desde o dia em que foi decidido”. Ele se refere, evidentemente, ao caso de 1896 no qual a Suprema Corte declarou que a doutrina “separados mas iguais”, que permitia a segregação racial, não afrontava o princípio da igual proteção das leis da Décima Quarta Emenda. Esse precedente somente seria revogado em 1954, no célebre caso Brown v. Board of Education, durante a Corte presidida por Earl Warren.
Justificar a radical guinada jurisprudencial em Dobbs, comparando-a ao que ocorreu em Brown, é uma argumentação no mínimo bastante questionável. Quando Plessy foi superado, em 1954, a opinião pública americana em sua larga maioria, o governo federal e os países ocidentais eram contrários à segregação racial. Quando Roe foi superado, no mês passado, a opinião pública americana em sua larga maioria, o governo federal e o mundo ocidental (na maior parte) são favoráveis ao aborto.
Plessy foi decidido no contexto do pós-guerra civil de negação de direitos de uma minoria. Roe é uma decisão cujo pano de fundo é o movimento feminista (segunda onda) de afirmação de direitos de uma minoria (mulheres). Não é possível estabelecer o que é “egregiously wrong” sem examinar o contexto histórico. Além disso, Plessy foi sendo minado por jurisprudência antecedente dos tribunais federais (como em um famoso caso em que foi proibida a segregação racial entre passageiros de um navio) e da própria Suprema Corte (sobre acesso de alunos negros a ensino superior ou sobre impossibilidade de execução de normas de segregação no zoneamento urbano). Roe, ao contrário, foi revogado sem qualquer “aviso prévio”, dos tribunais federais ou da própria Suprema Corte.
Outro argumento usado por Alito que supostamente justificaria a revogação de Roe seria a de que o precedente mostrou-se ao longo do tempo “unworkable”, ou seja, ele não funcionaria na prática, uma espécie de colisão insuperável entre a norma (jurisprudencial) e os fatos sociais, um divórcio incontornável entre o direito e a realidade, que dificultaria sua própria aplicação pelos tribunais inferiores.
É de se perguntar, no entanto, por que motivo Roe seria "unworkable"? Em todos os estados que simplesmente estavam cumprindo a decisão, Roe estava funcionando perfeitamente. Roe só não funcionava nos estados antiaborto que tentavam criar uma série de entraves legais à efetiva implantação do precedente. O professor de Harvard Adrian Vermeule, em artigo recente, recorda que a jurisprudência decorrente de Roe vinha sendo aplicada sem maiores controvérsias até o fim dos anos 1980, até que o Partido Republicano capturou politicamente a bandeira “Pro-Life”.
Então, não havia propriamente "unworkability", mas simples tentativas de desobediência à autoridade da jurisdição federal, que, aliás, foram reprimidas pela própria Suprema Corte nos casos de "undue burden", quando estados impunham ônus excessivo às mulheres gestantes que praticamente inviabilizavam a interrupção da gestação.
Vamos lembrar do tempo do caso Brown: os estados do Sul também alegaram que a integração racial nas escolas era impraticável e resistiram a ela, impedindo fisicamente alunos negros de entrarem em escolas e ameaçando até privatizar o sistema público de ensino (como no Arkansas); vários desses estados criaram leis capciosas para contornar Brown. Nesta linha de raciocínio de Alito, poderíamos até imaginar a seguinte hipótese: diante do embaraço que os estados do Sul criavam à dessegregação, a Suprema Corte decide assim: Brown é “unworkable”, não tem como ser cumprido, pois os destinatários da norma não a aceitam e os tribunais inferiores estão tendo enorme dificuldade para interpretar e aplicar o precedente.
Foi assim que a Suprema Corte então procedeu? Não, ela continuou julgando todos os casos de insurgência contra Brown, até o ano de 1972, quando ainda havia casos de segregação em ônibus escolares na pauta da Corte. A tese de um precedente "unworkable" é bastante racional, advém da teoria geral do direito, pois a rigor toda norma (constitucional, legislativa, administrativa ou jurisprudencial) pode ser "unworkable", basta recordar a Emenda Constitucional da Lei Seca, revogada por ser inviável. Mas no caso Roe, é difícil de engolir essa tese, especialmente porque a Suprema Corte, com erros e acertos, passou décadas adaptando Roe justamente para tornar o precedente concretizável.
Um experimentado jurista inglês, Lord Devlin, explicava a confiabilidade do sistema de precedentes da Common Law com uma imagem curiosa, para exprimir como mudanças de precedentes eram possíveis e compatíveis com a estabilidade do sistema jurídico. Dizia ele que “a mudança jurisprudencial bem raramente advém sem pré-aviso, como se fosse um relâmpago em céu sereno”. O caso Dobbs, contrariando essa regra, se apresenta como um raio em céu de brigadeiro. Como tal, a revogação de Roe — sem adentrar aqui ao mérito da questão subjacente — parece ter sido um dos maiores exercícios de arbitrariedade judicial na história da Suprema Corte.

Roe v. Wade

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JOTA

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