Opinião e Análise

Cássio Casagrande

No dia 27 de agosto de 1949, Wiley Blount Rutledge, Juiz da Suprema Corte dos EUA, estava passeando com seu carro no aprazível litoral do Estado do Maine, aproveitando os últimos dias das férias de verão e do recesso judiciário. De repente, Rutledge começou a passar mal ao volante, perdeu a consciência e seu carro desgovernado foi parar em uma campina.  Ele havia sido vítima de um derrame cerebral grave. Um veículo que vinha logo atrás chamou a polícia. Internado na cidade de York daquele Estado, veio a óbito duas semanas depois, em 10 de setembro.
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No dia seguinte, Sherman Minton, ex-Senador e Juiz Federal da Corte de Apelações do Sétimo Circuito, leu a notícia nos jornais em Indiana e imediatamente comprou uma passagem de trem para Washington. Chegando na capital federal, antes mesmo de ocupar um quarto de hotel, bateu na porta da Casa Branca carregando sua mala e pediu para falar com seu velho e estimado amigo Harry Truman, com quem havia convivido nos seus tempos de Senado.  No estilo direto e seco dos homens do Meio-Oeste, não precisou fazer uso de meias palavras: disse sem tergiversar que gostaria de ser nomeado para a Suprema Corte dos Estados Unidos na vaga aberta com o falecimento do eminente Juiz Rutledge.
<a href="https://conteudo.jota.info/risco-politico"><img class="aligncenter wp-image-244336 size-full" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2020/04/cta-risco-politico.png" alt="" width="1080" height="1080" /></a>
Truman confiava tanto em seu antigo colega de Senado que não precisou pensar duas vezes: pouco mais de três semanas depois, no dia 4 de outubro de 1949, Minton era aprovado por 48 votos a 16 em uma sabatina “expressa” no Senado, para assumir como o 87º Justice da Suprema Corte dos EUA.  Foi uma das mais rápidas nomeações para a mais alta corte constitucional norte-americana.
Cá estamos em 2020 e outra vez uma juíza federal do Sétimo Circuito que construiu sua carreira jurídica em Indiana (e também a única deste Estado em toda a história além de Minton) pode entrar para a lista das mais expeditas nomeações para a Suprema Corte dos EUA. Ocupando a presidência e a maioria no Senado, os Republicanos correm para aprovar o nome da conservadora Amy Coney Barrett antes das eleições de três de novembro, na vaga aberta com o falecimento da saudosa juíza Ruth Bader Ginsburg. A corrida contra o tempo é bastante compreensível, pois a presidência e o controle do Senado pelo Grand Old Party podem estar com os dias contados.
Curiosamente, aqui no Brasil, governado por forças igualmente conservadoras, encabeçadas por um presidente desejoso de imitar o congênere americano em tudo, também presenciamos uma das mais afobadas nomeações para o STF, publicada em ritmo de tropel pelo presidente Bolsonaro, na mesma edição do Diário Oficial que concedeu o ato de aposentadoria ao decano Celso de Mello. Desde a redemocratização, não recordo de outra nomeação ao STF ter ocorrido em tão exíguo lapso temporal.
A celeridade nos procedimentos de indicação e sabatina de um juiz constitucional nos EUA e no Brasil pode prejudicar a qualidade da escolha?
Sim, sem, dúvida, mas me parece muito grave aqui do que lá, pelas razões que vou apontar. O escrutínio público de um nome escolhido para uma corte constitucional nada mais é do que o exercício do princípio republicano, que recomenda absoluta transparência neste processo de indicação.
Como observou Alexandre Hamilton no Federalista número 77, “o poder de nomear é inequivocamente conferido ao executivo. E como haverá necessidade de submeter cada nomeação ao julgamento de uma casa do legislativo, as circunstâncias ligadas a uma designação, a partir do modo de sua condução, se tornariam naturalmente notórias, e o público não teria dificuldade em determinar que papel teria sido desempenhado pelos diferentes atores”.
<blockquote class="jota-article__eye">Um tempo minimamente razoável entre a indicação presidencial e a sabatina é necessário para que o indicado possa ser examinado pela comunidade jurídica, pelas facções políticas, pela imprensa, pela academia e pela opinião pública.</blockquote>
É preciso, enfim, deixar o candidato por um tempo na chuva.  Nos EUA, vários não aguentaram a intempérie. Desde sua fundação, a Suprema Corte já contou com 114 juízes, incluindo os atuais; 29 indicados não foram aprovados, seja porque retiraram a candidatura antes da sabatina, seja porque nela foram reprovados.
Por sua larga experiência com nomeações para a Suprema Corte e especialmente pela sua ampla percepção dos enormes poderes atribuídos aos juízes constitucionais, os americanos vêm aperfeiçoando cada vez mais a institucionalização no processo de escolha, e já vai longe o tempo em que um pretendente ao posto podia simplesmente bater na porta da Casa Branca e levar a cadeira.
Especialmente depois do caso Roe v. Wade de 1973 (que descriminalizou o aborto e evidenciou o poder político da corte) e das desastradas nomeações durante o governo Nixon (com a rejeição de dois nomes), o nível de escrutínio sobre os designados aumentou significativamente, o que levou a um aperfeiçoamento do processo de escolha dentro do Poder Executivo, no Senado e na própria sociedade civil.
Nos EUA, os presidentes, através do Office of the White House Counsel (uma espécie de Casa Civil do governo), elaboram uma lista de potenciais candidatos mesmo antes de surgir qualquer vaga, para o caso de haver uma vacância súbita (por morte, por exemplo).  Essa lista é cuidadosamente formada, com longo exame sobre o histórico (desde a faculdade) e as credenciais dos candidatos, seus pontos fortes e fracos.
Essa lista costumava ser sigilosa, mas o presidente Trump inovou e resolveu torná-la pública em sua administração (sem as avaliações, é claro), medida que merece elogios pois sem dúvida aumenta o grau de transparência e evita surpresas.  Há algumas críticas quanto a essa publicidade antecipada, já que alguns potenciais indicados poderiam agir deliberadamente de modo a agradar ao governo de turno, proferindo decisões que lhe sejam simpáticas (no caso de juízes federais, por exemplo).
Além disso, no momento de escolha efetiva, o serviço secreto dos EUA faz uma investigação especial sobre o indicado, para evitar constrangimentos futuros, como sonegação fiscal, conflitos de interesse com corporações ou governos estrangeiros, ou ainda, surpresas com passagens pouco edificantes da sua vida pessoal. A devassa nem sempre é eficaz: Douglas Ginsburg, indicado por Reagan, teve que retirar a candidatura quando a imprensa descobriu que ele havia sido um ávido consumidor de marijuana na juventude.  Brett Kavanaugh, o último nomeado por Trump, enfrentou graves acusações de assédio sexual durante a sabatina e escapou por pouco.
Além de criterioso exame preliminar no âmbito do Poder Executivo, o candidato à Suprema Corte dos EUA também se expõe ao exame do Senado ao longo do processo de sabatina, que não se resume apenas à sessão de arguição. Os Senadores do comitê judiciário (especialmente os que se opõe ou criticam a nomeação), examinam preliminarmente todo o “paper trail” do sabatinado, lendo tudo o que ele escreveu, desde trabalhos escolares, artigos acadêmicos e peças processuais, mesmo as mais antigas.
O equivalente à Ordem dos Advogados dos EUA (American Bar Association) possui um comitê específico de análise dos nomes indicados à Suprema Corte, que produz um relatório sobre o “notável saber jurídico” do escolhido, sendo que cada representante neste órgão emite um conceito: “well qualified”, “qualified”, “not qualified”. Algumas notas desfavoráveis de membros deste comitê já ajudaram a derrubar um indicado, Robert Bork, durante o governo Reagan (embora Bork fosse um jurista conservador respeitadíssimo, o que gerou pesadas críticas à ABA de atuar com viés ideológico).
<blockquote class="jota-article__eye">Também a sociedade civil nos EUA é muito ativa no processo. Organizações políticas e entidades de classe vasculham a trajetória dos potenciais nomeados, emitindo pareceres e manifestações políticas. Além disso, é claro, acadêmicos das mais prestigiosas universidades opinam contra e a favor das indicações.</blockquote>
Por tudo isso, nos EUA, embora o processo de indicação e aprovação de Amy Coney Barrett esteja correndo “a toque de caixa”, nenhuma surpresa causou aos americanos, especialmente porque ela já havia sido considerada nas indicações anteriores e o seu nome vem sendo objeto de intenso escrutínio há um bom tempo pela comunidade jurídica e ao público em geral, pelos mecanismos acima mencionados.
Aqui no Brasil não temos praticamente nada disso a que os americanos estão acostumados: não havia lista prévia, não houve qualquer tipo de investigação interna da administração sobre o passado do escolhido, a produção do indicado como magistrado e acadêmico era desconhecida da comunidade jurídica por razões óbvias, a OAB tampouco produziu uma avaliação criteriosa (limitando-se a uma nota favorável de seu presidente) e o Senado parece estar com a habitual pressa, tudo indicando que a sabatina será descuidada como quase sempre.
Tudo isso é agravado pelo fato de que o presidente Bolsonaro literalmente tirou um nome da cartola e, aliás, surpreendeu o próprio Nunes Marques, segundo consta na imprensa. Seria necessário, pois, um tempo razoável para que todas as informações relevantes do indicado viessem a público. Justamente pela baixíssima institucionalidade do modelo brasileiro, a correria para a nomeação de Kassio Nunes Marques nos deixa no escuro.
Exatamente por isso, quando alunos me perguntam sobre o que achei do indicado ao STF, respondo-lhes que é difícil fazer uma avaliação sem conhecer os votos, escritos acadêmicos e opiniões do nomeado. Como ele ostenta um doutorado, tentei encontrar seu lattes, sua dissertação de mestrado e a tese de doutoramento.
O indicado não está registrado no sistema lattes (isso, em princípio, não é nenhum problema, pois o STF não é uma universidade), porém seria bom se pudéssemos ao menos conhecer o seu currículo em outro formato que seja. Encontrei na internet a dissertação de mestrado defendida na Universidade Autónoma de Lisboa, li alguns trechos e o trabalho me pareceu bem articulado e de boa qualidade, em um exame perfunctório. O pensamento jurídico do magistrado parece caracterizar-se pela moderação diante do problema que examina (judicialização da saúde pública).
Decisões do integrante do TRF1 conhecemos uma ou outra, e as que foram mais divulgadas (o “caso da lagosta” e o voto em um incidente processual do momentoso processo Batisti) são absolutamente irrelevantes para se apreender a filosofia judicial de Nunes Marques. Enfim, com o pouco que já apareceu por aí, parece-me que o Desembargador Federal piauiense representa um perfil médio da magistratura brasileira, o que é um aspecto positivo quando se opta por escolher um nome do judiciário para integrar a Excelsa Corte. Lembremos, aliás, que Celso de Mello era um jovem Procurador de Justiça cedido à então Consultoria Geral da República, bastante discreto e pouco conhecido da comunidade jurídica, quando foi apontado por José Sarney para uma cadeira no STF.
Francamente, considerando o que poderíamos esperar de um presidente errático e emocionalmente instável como Bolsonaro, estou achando bastante razoável a escolha do indicado para a vaga do decano que se aposenta.
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O Sem Precedentes desta semana analisa <a href="https://www.jota.info/stf/do-supremo/bolsonaro-indica-kassio-nunes-stf-01102020" target="_blank" rel="noopener noreferrer">surpreendente indicação</a> de Kassio Nunes Marques, hoje desembargador do Tribunal Regional Federal da Primeira Região (TRF1), para o Supremo Tribunal Federal (<a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/stf">STF</a>). Ouça:
https://www.youtube.com/watch?v=6UbopF1SKqA&amp;feature=emb_title
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JOTA

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