Opinião e Análise

Cássio Casagrande

A cada semestre, distribuo aos meus alunos da graduação da disciplina de Teoria da Constituição alguns livros que considero “clássicos fundamentais” para o estudo do Direito Constitucional, que vão do século XVIII ao XX, de Sieyès e Lassalle a Hesse e Habërle. A cada semana, um grupo apresenta a leitura de um destes clássicos ao final da aula. Alexis de Tocqueville e seu monumental Democracia na América estão neste rol de cânones do constitucionalismo que elaborei. Percebi que em todo semestre este é o livro que causa maior empolgação, curiosidade e entusiasmo entre os estudantes. Aqueles que leem Tocqueville ficam realmente fascinados e intrigados com a sua obra-prima e querem aprender mais sobre o autor; alguns deles me instigaram, inclusive, a criar um grupo de estudos sobre o seu pensamento.
Tocqueville está, inquestionavelmente, na galeria dos grandes clássicos do pensamento francês: ele foi para o século XIX o que Montesquieu e Rousseau representaram para o século XVIII; ele é, aliás, o herdeiro de letras daqueles dois grandes escritores, ao mesmo tempo em que inaugura uma nova forma de discurso político, que hoje poderíamos chamar de “sociológico”. Mas classificar a obra polissêmica de Tocqueville efetivamente não é uma tarefa fácil. Pensador político; cientista social “avant la lettre”; filósofo da história? Como, afinal, defini-lo? Seus aforismos brilhantemente esculpidos o aproximam dos “moralistas franceses”<a href="#sdfootnote1sym" name="sdfootnote1anc">1</a> como Montaigne, La Rochefoucault e La Bruyére. E, ainda outra dificuldade: como descrever o seu encantador e inconfundível estilo? Porque, afinal, para a sorte de seus leitores, Tocqueville é, acima de tudo, um grande e maravilhoso escritor. Seria ele um ensaísta, panfletista, polemista, romântico?
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Os próprios intérpretes de Tocqueville não chegam a um consenso e cada um puxa a brasa para a sua sardinha. O fato de que os biógrafos e estudiosos da obra tocquevilleana divirjam quanto à natureza de seus trabalhos demonstra a sua originalidade, singularidade e peculiaridade. Tocqueville, no entanto, raramente é apresentado ao seu público como um jurista e de fato ele muito dificilmente poderia assim ser categorizado, se considerarmos juristas como os doutrinadores que dedicam sua vida a escrever obras jurídicas.
Mas o Direito era a sua formação de origem e o trabalho como promotor do parquet em Versalhes uma de suas mais conhecidas atividades profissionais no início de sua carreira; além disto, Toqcqueville escreveu com seu inseparável amigo Gustave de Beaumont uma obra de referência sobre a reforma penitenciária; mais importante ainda, o pensamento de Tocqueville sempre foi muito reverenciado pelos constitucionalistas - especialmente “A Democracia na América”.
A história desse livro, que ombreia com os grandes clássicos do século XIX, é conhecida: Tocqueville resolveu em 1830 tirar um ano “sabático”, como diríamos hoje. Aristocrata, liberal-conservador, Legitimista (isto é, defensor dos direitos hereditários dos Bourbon ao trono francês), estava desgostoso com a Revolução de Julho e a solução orleanista. Teve que jurar lealdade a contragosto ao novo regime para não perder seu cargo no Ministério Público. Utilizando sua rede de conhecimentos, convenceu o governo a licenciá-lo (sem vencimentos) para empreender uma missão “científica” aos EUA: estudar o sistema prisional daquele país. Mas isso, como se sabe, era um mero pretexto. Tocqueville estava atrás de sua obsessão: entender o inaudito experimento democrático do povo americano.
Tocqueville teve a percepção visionária de que a experiência política inédita que estava se sucedendo na América inglesa iria se alastrar pelo mundo ocidental, uma vez que via o advento da “igualdade de condições” como um movimento inexorável. Por igualdade de condições, o autor francês entendia a igualdade de status, ou o fim da sociedade de ordens. Para ele, a democratização da sociedade nos EUA conduzia à democratização da política e moldava as instituições jurídicas. Aqui surge o brilhante sociólogo do direito, sociólogo não só de leituras como “de campo”, percorrendo o país de norte a sul e leste a oeste, entrevistando dos mais humildes escravos e índios aos homens mais ricos e poderosos da nação. Aliás, Tocqueville era não só um sociólogo do Direito como um sociólogo do judiciário, pois são clássicas suas páginas sobre o benfazejo papel moderador dos juízes norte-americanos dentro do sistema de freios e contrapesos.
Para esse novo tipo de homem e de organização social, os americanos haviam criado um inédito direito público, cristalizado nas instituições concebidas na Filadélfia: federalismo, presidencialismo, congresso bicameral, suprema corte. Tocqueville, ao examinar essas instituições o faz como verdadeiro constitucionalista, tendo antes estudado os clássicos como os Artigos Federalistas de Hamilton, Madison e Jay, bem como a mais importante obra jurídica então em circulação sobre a Constituição de 1787, escrita pelo Juiz da Suprema Corte Joseph Story. E, muito importante, a sua abordagem tem uma perspectiva fundada no direito comparado, já que as instituições constitucionais americanas são frequentemente comparadas com os modelos europeus, especialmente o francês (a tal ponto que a obra é também sobre a Democracia na França...).
As reflexões de Tocqueville sobre o sistema constitucional americano eram consideradas tão importantes no século XIX que reverberaram em nosso país ao tempo de sua primeira edição. O autor francês é frequentemente citado nas duas primeiras obras de Direito Constitucional publicadas no Brasil no século XIX, pelos doutrinadores Pimenta Bueno, o Marquês de São Vicente, e Paulino José Soares de Sousa, o Visconde do Uruguai. A influência de Alexis de Tocqueville no Direito brasileiro não se resume evidentemente ao século XIX, pois ele sempre foi citado pelos nossos grandes constitucionalistas, especialmente os liberais. Ele está presente, por exemplo, no Curso de Direito Constitucional do saudoso Professor Afonso Arinos de Melo Franco, talvez o melhor manual da disciplina já publicado em nosso país.
Apesar de toda essa fama e relevância para o mundo do Direito, o fato é que nosso grande Alexis de Tocqueville anda em relativo e imerecido ostracismo em nossos cursos jurídicos. O fato é que a sua influência cessou em algum momento entre os anos 60 e 80, ao que parece, com o desparecimento da geração de Arinos. De alguma forma o autor francês “saiu de moda”.
Por que, afinal, isso aconteceu? Creio que há três fatores que explicam o injusto banimento de Tocqueville de nossos cursos jurídicos. O primeiro é que se trata de autor francês e ele vem sendo menosprezado da mesma forma que todos os outros grandes constitucionalistas franceses (Léon Duguit, por exemplo), botados de escanteio pelos atuais senhores da doutrina, que agora só querem saber de autores americanos e alemães.
Nossos constitucionalistas hoje só estão interessados em duas coisas: controle de constitucionalidade e interpretação constitucional, tratando todo o restante da disciplina com a mais absoluta indigência intelectual. Procurem nos manuais mais vendidos abordagens sobre separação de poderes ou impeachment. É tudo de uma enorme superficialidade e os autores que se atrevem a abordar a matéria limitam-se a comentários perfunctórios ou a compilar subservientemente a jurisprudência do STF. E a “casa de máquinas da Constituição” (na brilhante expressão do argentino Roberto Gargarella), responsável pelo funcionamento de nossa democracia, fica relegada a segundo plano pela doutrina. E é justamente aqui que os franceses - Tocqueville em especial - têm muito a nos ensinar. Ao revés, é precisamente em jurisdição constitucional (o assunto da moda) que eles têm menos a nos dizer (exceto o próprio Tocqueville, que escreveu sobre a sua invenção nos EUA), pela ausência de controle judicial de constitucionalidade típico na França. E, assim, todos nossos constitucionalistas voltam-se para a doutrina americana e alemã, cujo centro de interesse é, em essência, a jurisdição constitucional.
O segundo fator que explica a alienação de Tocqueville nas Faculdades de Direito atende pelo nome de Karl Marx. A área da sociologia do Direito no Brasil, a partir dos anos 60, passou a ser o abrigo, em razão do contexto político, da “esquerda jurídica”. E esta corrente inflou nossos cursos jurídicos, especialmente nas universidades públicas, com disciplinas e grupos de pesquisa do tipo “marxismo e direito”. Além disso, muitos desses professores esquerdistas não querem nem ouvir falar em Tocqueville por puro preconceito intelectual, pelo fato de se tratar de um autor clássico do pensamento liberal.
<a name="_GoBack"></a> E esse preconceito ideológico, lamentavelmente, por vezes é transmitido aos alunos. Certa vez sugeri a leitura de Tocqueville a uma ex-aluna minha com pendores intelectuais; ela já havia cursado Ciências Sociais em uma outra universidade pública do Rio de Janeiro e lhe perguntei se lá havia estudado o celebrado autor francês. Ela me respondeu que um dos seus professores a desestimulou dizendo que ele era um “filhinho de papai rico preocupado com o fim da aristocracia”. Bem, isto é uma simplificação muito grande, que em nada desautoriza o escritor normando; primeiro, porque há um erro conceitual em determinar que a preocupação central de Tocqueville era o fim da aristocracia, pois ele – embora um aristocrata convencido das virtudes aristocráticas - a toma como um fato inelutável e estava atento, essencialmente, aos problemas que o advento inexorável da democracia traria; segundo, porque é absolutamente incabível julgar e condenar as ideias de um autor relevante apenas em razão das circunstâncias de sua vida: Marx engravidou sua empregada doméstica e pediu que Engels assumisse a paternidade da criança – ninguém vai deixar de lê-lo ou reconhecer a originalidade de sua obra por causa de sua canalhice. O mesmo vale para o tremendo mau caráter Rousseau, que humilhava constantemente a mulher e entregava seus filhos recém-nascidos a orfanatos miseráveis porque as crianças iriam atrapalhar os seus estudos... E não vamos jogar fora “O Contrato Social” por conta destes detalhes nada abonadores de sua biografia.
O último motivo pelo qual os professores dos cursos jurídicos não recomendam Tocqueville é que a quase totalidade deles simplesmente não leu Tocqueville e muitos sequer têm a noção do que representa a sua obra para o mundo do direito. Recentemente fiz uma breve pesquisa nos inúmeros “Cursos de Direito Constitucional” mais vendidos no mercado (excetuando, evidentemente, aqueles manuais simplificados e “esquematizados” para concurso público, pois estou me referindo aos “cursos” minimamente sérios, de autores de indisputadas credenciais). Pois bem, nenhum deles se refere a Tocqueville, nem mesmo os mais cultuados.
É realmente uma pena que este autor fundamental esteja sendo sonegado aos estudantes de Direito no Brasil. Na Europa, nas últimas décadas houve um renascimento do interesse pela obra tocquevilleana a partir de sua redescoberta por intelectuais como François Furet e Raymond Aron. Pois em tempos de crise da democracia, não há outro autor que tenha produzido melhor reflexão sobre os problemas e riscos do sistema majoritário de governo. Os americanos sabem muito bem disso e é por esta razão que Alexis de Tocqueville continua atualíssimo nos Estados Unidos, inclusive nas letras jurídicas, sendo muito festejado na doutrina e jurisprudência daquele país (fora o fato de ser o autor mais citado em discursos presidenciais). Basta lembrar que ele foi objeto de um livro de Jon Elster e é citado ainda hoje em decisões da Suprema Corte - uma das mais recentes referências está na decisão sobre a constitucionalidade do casamento gay, Obergefell v. Hodges 576 U.S. ___ (2015) – por mais estranho que isso possa parecer... E antes que alguém pense que o autor francês estaria se revirando no túmulo com essa menção, é bom esclarecer que o recém aposentado Juiz Anthony Kennedy o citou para lembrar de suas lições em Democracia na América sobre a importância da família na ordem social americana.
É exatamente em razão dessa sua perene atualidade que um jornalista americano certa vez escreveu que as palavras de Tocqueville “parecem tão frescas como as notícias dos jornais desta manhã”. Os estudantes de Direito que o lerem aqui no Brasil terão a mesma impressão.
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<a href="#sdfootnote1anc" name="sdfootnote1sym">1</a> Os escritores moralistas não têm como objeto discorrer sobre a “moral” no sentido da defesa de um determinado e correto modo de vida; eles estudam na verdade “os costumes” (no francês, moeurs), ou seja, a mentalidade, o comportamento e o espírito da sociedade humana, aproximando-se do que denominaríamos hoje de “psicologia social”. Em geral, os moralistas adotam uma postura cética, pessimista e desdenhosa da natureza humana, estabelecendo o seu pensamento por meio de aforismos. Eles seriam “observadores das fraquezas humanas”, na expressão de Marcelo Coelho (Folha de São Paulo, 21.09.94)
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JOTA

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