Opinião e Análise

Cássio Casagrande

No dia 14 de dezembro de 2012, Adam Lanza, 20 anos de idade, residente em Newtown (Connecticut), matou sua mãe com uma arma de fogo e seguiu para a escola primária Sandy Hook, onde começou a atirar contra todos que ali se encontravam. Antes de cometer suicídio, ele matou 20 crianças do primeiro ano e seis educadores. Foi um dos episódios mais traumáticos de mass shooting da história dos EUA, o qual, como ocorre nesses momentos, suscitou acirrado debate sobre controle de armas naquele país.
Poucos anos depois, Alex Jones, um excêntrico e demagogo militante de extrema direita, radialista e produtor de conteúdo do website Infowars, começou a divulgar em seus programas a “teoria da conspiração” de que o massacre de Sandy Hook não existiu. Segundo ele, o governo federal teria forjado o episódio, valendo-se de atores que teriam interpretado o papel de pais das crianças assassinadas. O objetivo seria dar força aos movimentos em favor do controle de armas nos EUA.
Jones possui uma audiência de milhões de “conspiracionistas” alucinados, que acreditam que o governo americano forjou diversos eventos históricos, desde a ida do homem à lua ao atentado terrorista de Oklahoma em 1995. As inúmeras matérias que ele produziu sobre Sandy Hook, além de lhe renderem muito dinheiro decorrente da monetização na internet, fizeram com que centenas de seus seguidores viajassem milhares de quilômetros até Connecticut, para encontrar provas da “farsa”. Os mais loucos começaram a seguir e mandar cartas com ameaças de morte aos pais das crianças assassinadas, ao pressuposto de que eles estariam participando de um embuste.
Muitos dos pais, fartos da situação intolerável, processaram Alex Jones e sua empresa de mídia, alegando difamação e pedindo indenização pelos danos causados em razão das suas publicações. As ações foram ajuizadas em Austin (Texas), domicílio do réu. Espertamente, a equipe de advogados de Jones invocou a liberdade de expressão da Primeira Emenda, tal como interpretada pelo precedente Sullivan v. New York Times (1964). Andino Reynal, advogado da defesa, declarou: “Se for impedido questionar eventos públicos e se se permite banir a livre expressão porque eles poderiam ferir os sentimentos alheios, então não estamos mais na América”.
A jurisprudência da Suprema Corte dos EUA nunca afirmou o “free speech” como uma liberdade constitucional absoluta.  Ao contrário, ao longo do século 20 construiu a doutrina do “discurso protegido” ("protected speech"), segundo a qual a liberdade de expressão deve ser equilibrada com outros princípios constitucionais que merecem igual proteção da jurisdição constitucional. Discursos de incitação à violência, material obsceno (como pornografia envolvendo menores), divulgação de atos oficiais sensíveis à segurança nacional e difamação podem ser restringidos por leis ou atos administrativos.
Quanto à difamação, algumas leis estaduais que eram extremamente duras com a imprensa (impondo-lhes, por exemplo, o ônus processual de provar a verdade dos fatos em um processo judicial), foram superadas pelo julgamento do caso Sullivan, em que a Suprema Corte estabeleceu critérios mais rígidos e objetivos para os processos de difamação ajuizados por figuras públicas que se sentiam injustiçadas ou agredidas pela imprensa.
L.B. Sullivan era o chefe da polícia de Mongomery (Alabama) em 1964, no auge da repressão ao movimento em defesa dos direitos civis dos negros naquela cidade, e que se sentiu ofendido por uma matéria paga no New York Times, que retratava como brutais as ações dos policiais sob seu comando nos protestos ocorridos na capital do estado. Ele processou o jornal na justiça estadual do Alabama e ganhou uma indenização de mais de US$ 1 milhão, valor que, na época, poderia levar a inviabilizar financeiramente o famoso diário, que enfrentava sérios problemas econômicos.
O jornal nova-iorquino recorreu à Suprema Corte, que reverteu a decisão e estabeleceu novos padrões para processos difamatórios na imprensa ajuizados por figuras públicas, os quais permanecem em vigor até hoje. De acordo com o julgado, órgãos de imprensa somente podem ser responsabilizados por publicações consideradas difamatórias caso tenham agido com “efetiva malícia” (actual malice), significando com isso que o responsável pela matéria tinha pleno conhecimento de que a declaração era falsa ou que desconsiderou de forma imprudente que ela poderia ser falsa. Além disso, houve uma inversão do ônus probatório: não é mais o jornal que deve provar a verdade, mas o autor da ação que precisa demonstrar que o produtor do conteúdo tinha consciência da falsidade de suas afirmações. Este precedente praticamente inviabilizou esse tipo de processo, dada a dificuldade da formação probatória.
No caso Alex Jones, em princípio, tão altos padrões não seriam necessariamente aplicáveis, pois os pais das crianças mortas não eram integrantes do poder público, como no caso Sullivan. Mas a defesa de Jones alegou que eles eram “figuras públicas”, pois alguns deles passaram a militar politicamente pelo controle de armas, tese que geralmente é aceita nos tribunais americanos. Quanto ao ônus da prova, os autores da ação tiveram o trabalho facilitado, pois graças a uma trapalhada do advogado de Jones, receberam deste cópias de emails do réu, nos quais havia provas relacionando a falsidade das alegações ao alto faturamento da empresa de mídia.
Embora a jurisprudência americana seja bastante tolerante com teorias da conspiração relativas à ciência ou à história, não restringindo, por exemplo, publicações de que a Terra é plana ou de que os confederados venceram a Guerra Civil, a justiça no caso examinava fato histórico recentíssimo, com repercussão na esfera individual de pessoas atingidas pelo evento. Outro aspecto particular é que o dano efetivo à privacidade e tranquilidade dos afetados pelas notícias falsas era mais facilmente aferível do que no caso Sullivan, dada a materialidade das ameaças de morte que passaram a sofrer em razão das publicações irresponsáveis de Jones.
Também deve ter pesado na decisão o poder de transmissão veloz e amplo através da internet, bem como a monetização que a circulação desse tipo de notícia aberrante gera para o produtor do conteúdo falso, aspectos que não existiam na imprensa tradicional anterior à revolução digital. É improvável que a Suprema Corte reveja o caso, pois no ano passado já recusou outro em que o mesmo Jones foi processado e condenado em Connecticut.
Estabelecida a condenação, o júri fixou uma indenização de US$ 45,2 milhões a título de danos punitivos, acrescida de outra no valor de US$ 4,1 milhões por danos compensatórios. Este rumoroso julgamento parece apontar para uma nova era da jurisprudência americana sobre fake news na internet. “O discurso é livre, mas para mentir você precisa pagar; a corrida do ouro baseada em medo e desinformação deve acabar e deve acabar agora”, afirmaram os advogados dos pais que ajuizaram a ação.

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JOTA

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