Opinião e Análise

Cássio Casagrande

No seu nonagésimo sétimo ano de existência, o concurso de beleza mais conhecido dos EUA, o Miss America, vai aposentar os maiôs, biquínis e vestidos de gala. As garotas não desfilarão em trajes de banho ou roupas de festa. Até mesmo os sapatos de salto alto serão facultativos. De agora adiante, cada candidata vai escolher a roupa em que se sentir mais confiante. O objetivo será avaliar a beleza interior das jovens.
Quem anunciou as mudanças foi a presidente recém nomeada do comitê nacional do certame, Gretchen Carlson, ela mesma uma ex-Miss America (edição 1989). Carlson, depois de coroada, transformou-se numa respeitadíssima âncora da TV americana, até que em 2016 saiu da Fox News acusando o todo poderoso executivo Richard Ailes de assédio sexual. Ailes acabou defenestrado e fez um acordo judicial pagando milhões de dólares a Carlson. A ex-âncora assumiu a presidência do Miss America na esteira de um outro escândalo, no qual os altos dirigentes da entidade que organiza o concurso  – todos homens – foram gravados fazendo comentários vulgares, depreciativos e de conteúdo sexual às concorrentes ao posto de Miss.  Agora, toda a diretoria do comitê é feminina.
As mudanças no Miss America vêm, é certo, na onda feminista do movimento “Me Too”, que tomou conta dos EUA depois das dezenas de denúncias de assédio sexual na indústria do entretenimento. Mas o fato é que combater o estereótipo da mulher linda, sexy e tola que envolve o Miss America é uma bandeira antiga do movimento feminista americano; por coincidência, justamente neste agosto comemoram-se cinquenta anos do primeiro, corajoso e inusitado protesto contra o concurso – uma história que vale ser lembrada, pois simbolizou o início de uma revolução nos direitos de gênero naquele país.
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Corria o ano de 1968, um período conturbado, efervescente e perturbador nos EUA. O envolvimento americano no Vietnã estava no auge e os movimentos antiguerra dividiam a sociedade. Protestos de rua por vezes acabavam em violência. A implementação da dessegregação racial ainda despertava muitas tensões: Martin Luther King fora assassinado em abril, mais de cem cidades enfrentaram distúrbios e o movimento negro começava a se radicalizar com Malcolm X e o aparecimento dos Panteras Negras. Grupelhos de estudantes comunistas radicais começavam a se formar para praticar atentados tresloucados. A contracultura assustava os setores mais conservadores da sociedade: os verões do amor de San Francisco davam lugar também a grupos de lunáticos hippies do tipo George Manson, que iriam chocar o país no ano seguinte com assassinatos brutais. E tudo isso era o pano de fundo de um período extremamente tumultuário da política americana, com o assassinato de Bob Kennedy em junho, os conflitos de rua em Chicago desencadeados pela Convenção do Partido Democrata em agosto e a polêmica eleição de Richard Nixon, em novembro.
O movimento feminista americano, já fortalecido pela bandeira da “liberação da mulher” facilitada pela disseminação dos anticoncepcionais, se inseria naquele contexto de tumultos e provocações, nesse ano simbólico em que tudo parecia estar de pernas para o ar. No dia 22 de agosto de 1968, a associação política “Mulheres Radicais de Nova Iorque” lançou um manifesto intitulado o “No More Miss America”, com dez pontos contrários ao concurso de beleza que seria realizado alguns dias depois, em 07 de setembro, na badalada e brega Atlantic City, no vizinho estado de Nova Jersey.  As militantes feministas diziam lutar contra a opressão dos homens e em seu manifesto questionavam as premissas do consagrado evento, criado nos EUA em 1921. As lideranças do movimento contavam com apoio da prestigiosa American Civil Liberties Union (ACLU), a maior e mais importante associação de defesa de direitos civis dos Estados Unidos. No decálogo condenatório ao Miss America, os principais itens eram: a) as mulheres são estereotipadas como desmioladas e exibidas de forma degradante como animais em uma exposição; b) o concurso é racista, pois desde sua criação nunca levou uma mulher negra à fase final e nunca escolheu como vencedora candidata com origens nativas americanas (nem mesmo do Alaska, Havaí, Porto Rico ou Novo México); c) as misses eleitas são transformadas em mascotes militares, tendo sido levadas inclusive até o Vietnã para animar os soldados; d) a miss tem que representar o que se espera das mulheres na sociedade machista: inofensivas, meigas e apolíticas; e) a miss é uma idealização esquizofrênica de “madona-prostituta”; f) o concurso transmite a mensagem de que as mulheres, quando deixam de ser jovens, passa a ser descartáveis... e por aí seguiam as imprecações do grupo.
O manifesto terminava com uma convocação para as mulheres comparecerem a uma marcha a ser realizada diante da casa de espetáculos, que estaria lotada com oito mil espectadores. Elas pretendiam convencer as candidatas a não desfilar e, ainda, avisavam que só dariam entrevistas a jornalistas mulheres.
Embora o protesto no dia do concurso viesse a reunir um número não muito grande de manifestantes (entre 200 e 400 pessoas), ele foi amplificado pela intensa cobertura da imprensa (que então tratava o Miss America como um dos grandes eventos anuais do showbizz americano) e, muito especialmente, pela eficiente estratégia de comunicação visual adotada: além de coroar simbolicamente uma ovelha como Miss America, elas lançavam a uma grande cesta de lixo exemplares da revista Playboy, além de sutiãs, cílios postiços, cosméticos, espartilhos, sapatos de salto alto e outros adereços valorizados nos concursos de beleza (foi nesse dia que surgiu a lenda da “queima de sutiã”, que na verdade não ocorreu). E, ainda, as feministas seguravam grandes cartazes chamativos, como o que ilustra essa matéria, mostrando uma mulher nua com as demarcações de corte de carne bovina (peça que hoje está no Museu de Artes Visuais de Bruxelas, o MIMA). Outros estandartes tinham dizeres provocadores como “Bem-vindo ao Leilão de Gado do Miss America”.  Tudo isso transmitido via satélite em rede nacional teve, evidentemente, um impacto enorme no público americano.
Foi também nesse mesmo 1968 que a Associação Nacional para o Progresso das Pessoas de Cor (NAACP – National Association for the Advancement of Colored People), em dura crítica ao padrão “branco” do Miss America, lançou um evento concorrente na mesma data, horário e nas proximidades do concurso de beleza “oficial”, que foi denominado de Miss Black America, apenas com concorrentes negras (o qual é realizado até hoje).
O protesto feminista acabou sendo tragado pelo clima de extrema politização e polarização do final dos anos 60, onde tudo era reduzido de forma simplista a uma luta entre esquerda e direita (como nos dias de hoje, aliás...). Carol Hanisch, uma das organizadoras do protesto anti-Miss America, escrevendo anos mais tarde, lembrou as dificuldades de afirmação do movimento em face das lutas ideológicas que contaminavam o debate público: “enquanto boa parte da esquerda nos censurava por atacar algo ‘tão ridículo e desimportante’, ou por ‘reformismo’, a direita nos via como uma ameaça e no dia da manifestação bradava contra nós coisas como ‘voltem para a Rússia’ e ‘Mães de Mao’”. Hanisch também faz uma autocrítica aos exageros do movimento: “Muito ironicamente, o que a imprensa underground de esquerda parecia mais apreciar em nossa ação era justamente o nosso maior erro – o caráter antifeminino do protesto.”
Fato é que os protestos feministas contra o Miss America de 68 viraram literalmente peça de museu e não se repetiram nos anos seguintes, pois sob Nixon e após ele os anos setenta testemunhariam um refluxo conservador contrário a tudo que era “liberal, alternativo e anos sessenta”.  No entanto, aquele evento parece ter sido um ponto de virada bastante simbólico. Embora as esquerdas tenham saído politicamente derrotadas daqueles anos rebeldes (nos EUA e no mundo), especialmente no que diz respeito às “lutas de classe”, o fato é que sua agenda “identitária” pouco a pouco foi ganhando espaço;  em particular, a luta em defesa dos direitos reprodutivos das mulheres e de igualdade civil entre os sexos consolidou-se justamente durante a ascensão do conservadorismo político que dominaria os Estados Unidos nas duas décadas seguintes.
E nada é mais sintomático do que perceber essa tendência na jurisprudência e composição da Suprema Corte dos EUA. Como se sabe, com Nixon, desde 1970 (e apesar das trapalhadas iniciais do presidente, que teve duas indicações rejeitadas), os republicanos conseguiram fazer uma maioria sólida de juízes conservadores na corte constitucional americana (que perdura de então até hoje).  E, paradoxalmente, é neste período politicamente conservador que, pela primeira vez na sua história, a Suprema Corte começa a acolher e decidir favoravelmente casos suscitados pelo movimento feminista, fundamentando muitos dos julgamentos sobre igualdade entre os sexos na Civil Rights Act de 1964 que, como se sabe, fora concebida originalmente para resolver de forma definitiva o problema da segregação racial no sul do país.
Com o apoio incisivo da mesma American Civil Liberties Union que copatrocinou o “No More Miss America”, diversos casos de interesse do movimento feminista entraram na pauta do mais alto tribunal constitucional dos EUA.  Em Phillips v. Martin Marietta 400 U.S. 542 (1971), a Suprema Corte julgou inconstitucional a possibilidade de um empregador recusar-se a contratar trabalhadoras mulheres pelo fato de terem filhos pequenos; em Reed v. Reed 404 U.S. 71 (1971), declarou a inconstitucionalidade de lei estadual que dava preferência a homens sobre mulheres na administração de espólio; no caso Eisenstadt v. Baird 405 U.S. 438 (1972), considerou discriminatória e prejudicial às mulheres lei estadual que autorizava distribuição de anticoncepcionais a pessoas casadas, mas o proibia para indivíduos solteiros; no célebre processo Roe v. Wade 410 U.S. 113 (1973), caracterizou como “fundamental” o direito das mulheres ao aborto; em Frontiero v. Richardson 411 U.S. 677 (1973) declarou inconstitucional dispositivos do sistema de pensões por morte das Forças Armadas, que tratava de forma distinta militares homens e mulheres; em Cleveland Board of Education v. LaFleur, 411 U.S. 632 (1974), a corte fulminou por inconstitucionalidade norma local que obrigava professoras grávidas a se afastar do trabalho, sem remuneração, a partir do terceiro mês de gestação e a retornar somente quando o bebê completasse três meses de idade; no caso Taylor v. Lousiana, 419 U.S. 522 (1975), reconheceu a inconstitucionalidade de estatuto da Lousiana que indiretamente favorecia a convocação de homens para o tribunal do júri; em Stanton v. Stanton, 421 U.S. 7 (1975), afirmou violar o princípio da isonomia o estabelecimento de maioridade civil em lei estadual distinta para homem (21 anos) e mulher (18 anos), na pressuposição do legislador de que as mulheres necessitam menos tempo de educação para a vida adulta; no caso Craig v. Boren, 429 U. S. 190 (1976) julgou inconstitucional lei estadual que estabelecia idade mínima diferenciada entre homens e mulheres para consumo de bebida alcoólica; em Dothard v. Rawlinson, 433 U.S. 321 (1977) invalidou requisitos de admissão para guardas prisionais baseados em medidas de peso e altura que na prática excluíam as mulheres. Esses são apenas uns poucos e mais conhecidos exemplos. Da década de 1970 em diante – e até os dias de hoje – há uma copiosa jurisprudência constitucional nos EUA assegurando a igualdade de direitos entre mulheres e homens (vide referência ao final do texto).
E, para além das conquistas na jurisprudência, o progresso da agenda feminista nas reivindicações constitucionais por igualdade culminou com o simbolismo da nomeação, pelo Presidente republicano Ronald Reagan, em 1981, da primeira mulher a integrar a Suprema Corte, a texana Sandra Day O’Connor, que exerceu o cargo até 2006. Desde então, três outras mulheres foram nomeadas para a Suprema Corte (todas por presidentes democratas) e ainda estão na ativa, perfazendo um terço da composição do colegiado: Ruth Bader Ginsburg (no governo Clinton), Sonia Sotomayor e Elena Kagan (ambas por Obama). Observe-se, portanto, que de 1970 para cá Presidentes eleitos pelo Partido Democrata nomearam apenas quatro membros da Suprema Corte, sendo três mulheres. Ginsburg, hoje com 85 anos, construiu sua reputação de constitucionalista atuando justamente como advogada da ACLU, em amicus curiae perante a Suprema Corte, em quase todas as causas relevantes para as mulheres nos anos 1970 e 80.
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As atuais mudanças propostas no Miss America podem ser um pouco ingênuas, exageradas ou idealistas (pois, pela minha experiência são necessários alguns meses para se descobrir a beleza interior de uma pessoa – sendo otimista, é claro), como, também, assim devem ter parecido as ideias das “Mulheres Radicais de Nova Iorque”, em 1968.  Mas grandes mudanças no direito são prenunciadas por visionários e visionárias cujas palavras, ao seu tempo, foram tidas por sandices. E, além de tudo, agora a mudança vem de cima para baixo, pois aquela geração de bravas mulheres chegou ao poder e virou o mainstream.
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Para quem tiver curiosidade e quiser conhecer outras dezenas de casos sobre direitos reprodutivos e de igualdade civil das mulheres na Suprema Corte dos EUA, na linha referida no texto, há para consulta excelente <a href="https://www.aclu.org/other/timeline-major-supreme-court-decisions-womens-rights" target="_blank" rel="noopener">material da American Civil Liberties Union</a> sobre o tema.
Está disponível na internet uma ótima reportagem radiofônica sobre o protesto feminista de 1968 no Miss America, feita no calor da hora em Atlantic City pela Rádio Pública de Nova Iorque, cujos arquivos históricos estão disponíveis <a href="https://www.wnyc.org/story/first-protest-miss-america-pageant-1968/" target="_blank" rel="noopener">no site daquela instituição</a>.
Por fim, <a href="https://timeline.com/photos-pageants-burning-bras-ad896d1e12a" target="_blank" rel="noopener">neste site podem ser encontradas vários fotos</a> do protesto das Mulheres Radicais de Nova Iorque aqui referido, inclusive da divertida coroação de uma ovelha como Miss America.

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JOTA

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