Opinião e Análise

Cássio Casagrande

Eles queriam purificar o mundo e acreditavam encarnar a virtude cívica. Seu objetivo era romper totalmente com a velha ordem e seus privilégios. Em seu radicalismo pequeno burguês, desejavam com ardor instaurar uma “nova política”, despida de todos os vícios, e para tanto se apresentavam como “incorruptíveis”. Autoproclamados paladinos de uma moralidade superior, instalaram um “tribunal de salvação nacional”, onde julgavam arbitrariamente os “inimigos do povo”, com a aprovação sumária do populacho, que urrava quando os caídos em desgraça marchavam desconsolados para a guilhotina. Mas, na voragem da revolução que instigavam e que a tudo sorvia, foram eles próprios tragados no torvelinho da insensatez e dos abusos a que deram causa. Acabaram, muito mais rápido do que podiam imaginar, perdendo a própria cabeça.
Descrevi, muito suscintamente, no parágrafo acima, o que ocorreu com os jacobinos durante o mais radical período da Revolução Francesa, conhecido como “Convenção”, etapa na qual se implantou “La Terreur”, em que pontificaram os radicais personificados na figura de Maximilien Robespierre, líder político extremista que, em nome dos sagrados Direitos do Homem e do Cidadão, e na honorável intenção de proteger a Liberdade, a Igualdade e a Fraternidade, mandou milhares de inocentes para a guilhotina e acabou, ele próprio, no dia 10 de Termidor do ano II, sentindo cair-lhe sobre o pescoço a navalha fria e pesada criada pelo Dr. Joseph-Ignace Guillotin.
<a href="https://conteudo.jota.info/poder-contato"><img class="size-medium wp-image-292717 aligncenter" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2021/01/jota-pro-poder.jpg" alt="" width="688" height="688" /></a>
Mas, curiosamente, esse mesmo parágrafo que redigi pretendendo resumir muito sinteticamente o que foi a “Convenção”, se descolado da França de fins do século XVIII, parece incrivelmente servir como uma luva, para descrever, quase à perfeição e com leves concessões à metáfora, o que ocorreu com Deltan Dallagnol, Ségio Moro e todos os neojacobinos da República de Curitiba, cujas intrépidas ações “revolucionárias” acabaram sendo desveladas ao público pelo hacker de Araraquara, um sans-culotte anônimo que fez a roda da fortuna virar.
O Professor Christian Lynch (IESP/UERJ) escreveu em princípios de 2018 um <a href="https://insightinteligencia.com.br/ascensao-fastigio-e-declinio-da-revolucao-judiciarista/" target="_blank" rel="noopener noreferrer">ensaio na Revista Insight Inteligência</a>, brilhante e profético, no qual interpretava o fenômeno da Operação Lava Jato no contexto mais amplo de uma “revolução judiciarista”, uma espécie de “tenentismo togado” (apud Luiz Werneck Vianna) de parcela da elite jurídica que se autoproclamava o papel de “vanguarda moralizadora” para salvar o Brasil do atraso. Traçando um paralelo com a Revolução Francesa, Lynch detectava também, no mesmo artigo, que a reação termidoriana já estava a caminho, capitaneada pelo ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal (STF). Essa reação se consumou na semana que passou, como vimos.
O que mais me chama a atenção no paralelo traçado com os eventos da Revolução Francesa, e que foi pouco explorado no texto de Lynch (compreensivelmente, porque anterior às eleições de 2018 e às revelações da Vaza Jato), é que há, de fato, muitas semelhanças psicológicas entre os jacobinos da “Convenção” e os principais protagonistas da Operação Lava Jato. Destaco, dentre todas, o “messianismo salvacionista” e a crença de que os condutores da “revolução” encarnavam um novo tipo de homem, dotado de uma moralidade superior e predestinado a mudar o mundo, revogando a velha ordem por um ato de vontade.
Dentre as mensagens que vieram a público trocadas entre Dallagnol e Moro, a mais emblemática de todas a revelar este espírito de idealismo mágico ocorreu em 13 de março de 2016, quando manifestações de rua contra o governo Dilma Rousseff começavam a assomar nas ruas, e o procurador escreveu ao ex-juiz: “E parabéns pelo imenso apoio público hoje. (...) Seus sinais conduzirão multidões, inclusive para reformas de que o Brasil precisa, nos sistemas político e de Justiça criminal (…)”, escreveu Dallagnol.  Isso já não era mais um processo judicial, mas, sim, uma missão divina transcendental em forma de ação política.
Salvacionismo plenamente encarnado pelo ex-magistrado, como se vê da resposta que enviou ao membro do Ministério Público Federal (MPF): “Parabéns a todos nós (...). Ainda desconfio muito de nossa capacidade institucional de limpar o Congresso. O melhor seria o Congresso se autolimpar mas isso não está no horizonte. E não sei se o STF tem força suficiente para processar e condenar tantos e tão poderosos”.
<blockquote class="jota-article__eye">Foi justamente a partir da desconfiança de que altos escalões do Judiciário talvez não estivessem dispostos a se aliar ao fanatismo jacobinista que a derrocada viria.</blockquote>
Enredando-se em disputas internas do STF, (“in Fux we trust”, “Uhuu, o Fachin é nosso”), a ação dos “revolucionários” lavajatistas voltou-se à própria cúpula do Judiciário (que, incrivelmente, com alguns votos vencidos aqui e ali, estava desde o princípio apoiando enfaticamente as ações vingadoras dos radicais de Curitiba).  As revelações da Vaza-Jato mostraram que a força-tarefa tentou investigar (ilegalmente) ministros do STF e do Superior Tribunal de Justiça (STJ), com ganas de incriminar vários integrantes das mais altas cúpulas do judiciário.
Assim como ocorreu com o círculo de Robespierre, nem o mais fervoroso jacobino estava seguro de nada diante do furor jacobinista. Era preciso reagir e o Termidor já estava a caminho.
Moro, que duvidava da “força do STF para condenar os poderosos”, fez um movimento ainda mais ousado (e tresloucado como toda ação jacobina nos seus piores dias) com o fim de cumprir sua autoimaginada missão redentora: abandonou a toga em aliança com alguém que absurda e ingenuamente acreditou representar a “nova ordem”, para tentar um duplo twist carpado e chegar ao STF “pelo alto”. Supôs até mesmo que teria força para indicar um segundo nome à corte constitucional.  Ou quiçá, algo ainda mais megalomaníaco, tomar a própria República pela presidência. Semelhantes delírios também assaltavam a cabeça do atormentado procurador Dallagnol, que cogitava seriamente largar o MPF para concorrer ao Senado pelo Paraná.
Outro aspecto a revelar curiosa coincidência entre os dois momentos da história é que os jacobinos levaram seus inimigos à guilhotina vilipendiando o devido processo legal, e quando levados eles próprios à mesma guilhotina padeceram do mesmo vício. Não quero comparar, é óbvio, se não metaforicamente, os julgamentos sumários da Convenção e do Termidor, com os processos judiciais momentosos que sempre cercaram a Lava-Jato. Mas é digno de nota que o processo do ex-presidente Lula se apresenta hoje, acima de tudo, como um instrumento de pura ação política jacobina; da mesma forma, não há como ignorar que as decisões do STF na semana passada, com suas marchas e contramarchas, atropelos processuais, rasteiras e blefes de última hora dignas de um carteado, não revelam outra coisa se não o mesmo desiderato na reação termidoriana de instrumentalização dos processos.
Como sabem todos que estudaram a história da Mãe de Todas as Revoluções, a reação termidoriana foi um movimento conservador. Mas se tratava, naquele contexto, de um conservadorismo benfazejo e necessário, destinado a por fim ao caos, à arbitrariedade e ao banho de sangue da guilhotina, um conservadorismo em favor das instituições liberais inerente à própria filosofia da Revolução que estava sendo desfigurada.
Claro que, como em toda reação conservadora, muitos nela embarcaram pelos motivos errados e com maus propósitos. Isso ocorreu no Termidor quando a burguesia, a pretexto de por fim ao terrorismo, avançou para combater o voto universal, a participação política do nascente operariado e a liberdade dos escravos nas colônias.
Como lembra Hannah Arendt em “Da Revolução”, todo processo de restabelecimento da ordem institucional é necessariamente contrarrevolucionário e a contrarrevolução também pode ter sua força criadora de novas formas de institucionalidade. Por isso, não se deve achar que os objetivos de probidade da Lava Jato estão perdidos para sempre pelo fato de que alguns de seus protagonistas acreditaram, como jacobinos redivivos, que os fins justificam os meios.
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O episódio 52 do podcast Sem Precedentes discute os bastidores e as desconfianças envolvendo o caso Lula no Supremo Tribunal Federal. Ouça:
https://youtu.be/1T8EYyNCQeM
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robespierre

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JOTA

Dallagnol, Moro e os robespierres de Curitiba não estudaram a Revolução Francesa

A reação termidoriana do STF contra os jacobinos da Lava Jato

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