Opinião e Análise

Cássio Casagrande

Querida Justiça do Trabalho,
sei que já está com mais de 80 anos, então talvez não recorde muito bem: fomos apresentados um ao outro ali por volta de 1973 ou 1974. Eu tinha cerca de 8 anos de idade quando descobri que você existia. Meu pai era um homem da classe trabalhadora, empregado de uma empresa estatal e foi ignobilmente despedido por justa causa em um ato de mera perseguição. Eram tempos difíceis.
O despedimento do meu pai da companhia telefônica onde trabalhava atingiu duramente a família. Sem emprego, sem indenização e com a “carteira suja”, minha família perdeu a casa própria e fomos morar de aluguel. Meu pai passou a viver de “bicos”. Mas ele encontrou apoio no sindicato, cujo advogado ajuizou uma ação trabalhista para decretar a nulidade da justa causa e pedir reintegração no emprego. Foi vitorioso depois de alguns anos de luta judicial, em todas as instâncias. Desde então, querida Justiça do Trabalho, virei seu fã e me considero, perdoe-me a intimidade, um grande amigo seu.
Depois, quase que ao acaso, fui estudar Direito. E em outro capricho da vida, fui chamado para fazer estágio em um excelente escritório trabalhista, que exercia uma advocacia militante em defesa da classe trabalhadora e dos sindicatos. Tempos depois, fui aprovado em concurso para o MPT e desde então não nos largamos mais.
Sou também professor e, sempre que pude, a defendi no exercício do magistério, especialmente quando alguns beócios a denunciaram por suas origens familiares, dizendo que você tem parte com o diabo do fascismo. Pura ignorância de liberais udenistas redivivos, viúvas do lacerdismo tardio que incrivelmente estão em voga em pleno século 21.
Contaram-me, minha amiga Justiça do Trabalho, que você anda muito sorumbática, deprimida e morrendo de desgosto, desenganada mesmo, como se diz. Posso compreender, pois você nos últimos anos vem sendo alvo de ataque por políticos toscos, empresários predadores e “conservadores de costumes”, esses inclusive que se dizem cristãos e ignoram que você foi fruto intelectual dos que, no Brasil, defendiam os direitos sociais da Encíclica papal Rerum Novarum.
Sei que alguns golpes da chamada <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/reforma-trabalhista">reforma trabalhista</a> contribuíram para seu abatimento. Restringiram o acesso de trabalhadores à sua jurisdição e isso foi comemorado como algo “positivo” (positivo para quem?). Legisladores representando poderosos lobbies empresariais acharam que o nosso grande problema é uma justiça muito acessível e não o descumprimento da lei.
Disseram-me que o golpe final veio de dentro do próprio Judiciário. Imaginei que você poderia de alguma forma reagir, mas parece que o desconsolo é grande. Dói-me ver você assim, tão prostrada, tão calada, cabisbaixa diante desta arrogância suprema de certos excelsos juízes, justamente aqueles que jamais seguraram em suas mãos uma carteira de trabalho, nunca visitaram um sindicato, mal leram um manual de Direito do Trabalho, só conversaram com trabalhadores quando estes lhes prestam serviços domésticos, não sabem nem o endereço do fórum trabalhista em suas cidades, mas se acham, com grande prepotência e soberba iluminista, no direito de lhe dizer como deve agir diante de casos em que você simplesmente aplica princípios elementares do juslaboralismo, como a primazia da realidade sobre o contrato formal.
Mas compreendo bem sua desolação e sua falta de vontade de viver; afinal, se não puder sequer decidir ações de vínculo de emprego, então para que continuar existindo? Para carimbar parcelamento de rescisão de contrato em dez prestações e fixar condenações por danos morais em R$ 5 mil? Isso não seria nada digno e sem dignidade ninguém sobrevive.
Comove-me muito acompanhar sua agonia e ver que você se encontra próxima ao fim. Então lhe deixo aqui minhas últimas palavras. Que você descanse em paz, minha amiga. Guardarei boas lembranças e minha gratidão. Bem lá no fundo, ainda tenho a ilusão de que, como Jesus Cristo, você possa ressuscitar em breve.

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JOTA

J.T., foi um privilégio ter convivido com você por tanto tempo, R.I.P.

A morte lenta e dolorida da Justiça do Trabalho

Uma carta de despedida para a Justiça do Trabalho