Opinião e Análise

Cássio Casagrande

<p>Li com certo estranhamento a <a href="https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2021/04/justica-trabalhista-rastreia-celular-e-redes-sociais-contra-falsos-depoimentos-em-acoes.shtml" target="_blank" rel="noopener noreferrer">reportagem do jornal <em>Folha de S. Paulo</em></a>, sobre a utilização de “provas digitais” na Justiça do Trabalho. De acordo com a matéria, o Tribunal Superior do Trabalho (TST) está estimulando que os juízes recorram à tecnologia para substituir provas testemunhais por evidências produzidas pelos rastros digitais que todos deixamos para trás.</p>
<p>A administração da Justiça do Trabalho estaria recomendando aos juízes buscarem dados em operadoras de telefonia, aplicativos, serviços de backup e nuvens de armazenamento com a finalidade de instruir processos de horas extras, justa causa, assédio, equiparação salarial e outros.</p>
<p><a href="https://www.jota.info/produtos/poder?utm_source=Banner%20site&amp;utm_medium=Artigos&amp;utm_campaign=CTA_Poder_materias"><img class="size-medium wp-image-292717 aligncenter" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2021/01/jota-pro-poder.jpg" alt="" width="688" height="688" /></a></p>
<p>A Presidente do TST, Ministra Maria Cristina Peduzzi, ouvida pela reportagem, apóia a iniciativa e a Escola Nacional da Magistratura do Trabalho está oferecendo cursos sobre ferramentas digitais aos juízes da instituição, ministrados por um Promotor de Justiça da Bahia e um Delegado de polícia de São Paulo.  Dentre outros usos das “provas tecnológicas”, cogita-se empregar no processo do trabalho, por exemplo, a geolocalização do celular do trabalhador para reconhecimento ou rejeição do direito ao recebimento de horas extras.</p>
<p>Não é novidade na Justiça do Trabalho o uso de informações de “pegadas digitais” que patrões e empregados deixam pelo caminho das relações de trabalho. Processos de assédio moral e sexual há muito têm sido decididos com o trazimento de conversas por watsapp ou email; casos que envolvem justa causa não raro são julgados a partir de informações disponibilizadas pelo empregado em redes sociais abertas, sendo clássico o processo do trabalhador que falta por estar doente e aparece sorridente no mesmo dia tomando cerveja na praia...</p>
<p>Não há nenhum problema constitucional aparente quanto a esse tipo de uso de informações digitais, já que, no primeiro caso, tanto o Supremo Tribunal Federal (STF) como o TST reconheceram a validade de gravação de conversa feita por um dos interlocutores para a defesa de seu direito;  quanto ao segundo caso, tão pouco se vislumbra violação à garantia constitucional do art. 5º., inc. X, já que o trabalhador que espontaneamente veicula dados pessoais em rede aberta não tem nenhuma “expectativa de privacidade” (conceito criado no direito norte-americano a partir do precedente Katz v. United States, de 1967).</p>
<blockquote class="jota-article__eye"><p>A situação muda de figura, no entanto, quando a Justiça do Trabalho considera adotar meios completamente invasivos da privacidade das partes, como a geolocalização do trabalhador por antenas de celular ou a colheita de dados armazenados em nuvens, os quais estão protegidos pelas cláusulas constitucionais de inviolabilidade das comunicações e dados (CR, art. 5º., XII), cuja única mitigação possível é para fins de persecução penal.</p></blockquote>
<p>Não há dúvida de que dados de localização por antena ou armazenados em nuvem possam ser usados pela própria parte em seu favor, quando ela espontaneamente abre mão do sigilo de seus dados: por exemplo, o empregado poderia requerer à sua operadora de celular informações de sua geolocalização em determinada data para demonstrar que estava dentro da empresa em certo horário.  O mesmo vale para dados e informações armazenados em nuvem pessoal.</p>
<p>No entanto, o que parece ser a política do TST e da ENAMAT é estimular os juízes a, de ofício, buscarem essa prova, quando por exemplo houver contradição entre depoimentos testemunhais. Aí é que mora o perigo. Diante de contradição na prova oral sobre horas extras, poderia o magistrado oficiar uma operadora de celular ou empresa de armazenamento de dados, para que, mediante ordem judicial, apresentem esses dados sigilosos em um processo trabalhista?</p>
<p>Não há dúvida de que, nos termos do art. 370 do CPC, o juiz pode determinar de ofício as provas necessárias ao julgamento do mérito. Porém, isso dever ser feito nos limites das garantias constitucionais que preservem o dever de imparcialidade da magistratura, como também dos próprios direitos fundamentais materiais das partes.  Lembro a esse respeito as palavras de Lenio Streck, em seus comentários ao CPC:</p>
<p><em>“Esse dispositivo se constituía no artigo 130 do CPC/73. Agora desdobrado em caput e parágrafo, não introduziu alterações sintáticas. Evidentemente, se o seu texto é o mesmo, a sua norma deverá ser diferente, na medida em que o CPC se inscreve em um novo paradigma de compreensão, isto é, do superado paradigma da subjetividade parte-se para a intersubjetividade. Isso quer dizer que o juiz, quando agir de ofício, não terá a liberdade de convencimento ou a liberdade de apreciação do quadro probatório como tinha no CPC derrogado.</em></p>
<p><em>Mesmo que esteja autorizado a agir de ofício, não pode se colocar de um lado do processo, olvidando a necessária imparcialidade, que deve ser entendida, no plano do Constitucionalismo Contemporâneo, como o princípio que obriga o juiz a uma fairness (Dworkin), isto é, a um jogo limpo, em que as provas são apreciadas com equanimidade. Isso também quer dizer que, mesmo que possa agir de ofício, o juiz não o faça agindo por políticas ou circunstâncias de moralidade, e sim por intermédio dos princípios constitucionais.”</em></p>
<p>No caso, há evidente óbice constitucional a impedir colheita daquele tipo de “provas digitais” por iniciativa do Juiz do Trabalho: a quebra do sigilo de dados por terceiro só é admissível no processo penal e, por conseguinte, mediante requerimento do Ministério Público.</p>
<p>Admitir que o Juiz do Trabalho, por iniciativa própria, possa quebrar o sigilo de dados e de comunicações das partes seria emprestar-lhe funções de investigação típicas do Ministério Público, o que sem dúvida derruiria o ideal da imparcialidade da jurisdição.  Aliás, o fato de que Juízes do Trabalho estejam sendo “treinados” por um membro do Ministério Público e por um Delegado de polícia já é sintomático dessa potencial patologia. Juízes julgam, não investigam.</p>
<hr />
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