Opinião e Análise

Cássio Casagrande

Em fins do ano passado, o grupo de ação política conhecido como Sleeping Giants Brasil começou a articular uma campanha de desmonetização contra a rádio Jovem Pan, ao argumento de que ela estaria promovendo fake news, discursos de ódio e ataques à democracia brasileira. A estratégia consistia em enviar mensagens públicas a grandes anunciantes do veículo de imprensa, questionando se os princípios da empresa estavam de acordo com o conteúdo controverso da sua programação. A ação parece ter dado resultados, pois de acordo como o site The Intercept Brasil, documentos internos da empresa revelam uma perda de patrocínios estimada em mais de R$ 800 mil até o fim de 2022.
Inconformados com o que chamam de “campanha de difamação”, os diretores da Jovem Pan resolveram processar o grupo Sleeping Giants Brasil com base nos arts. 186 e 927 do Código Civil, em ação de reparação de danos. O pedido liminar foi indeferido pela Justiça Comum do Estado de São Paulo. Ao que parece, a defesa ainda não foi apresentada nos autos, mas suponho que os advogados do réu sustentarão o exercício regular do direito de liberdade de expressão.
Será que uma ação semelhante à ajuizada pela Jovem Pan teria chances de prosperar nos EUA? Acredito que não. Os boicotes são profundamente enraizados na prática política americana, pois o próprio processo de independência em face da Coroa Britânica foi marcado pela recusa dos “patriotas” em consumir produtos ingleses depois da edição do malsinado “Stamp Act”.
Após a industrialização do país, os boicotes passaram a ser usados, ao lado da greve e do piquete, como uma poderosa arma pelo nascente movimento sindical americano, sendo reconhecidos como legítimos por algumas legislações estaduais. Em um primeiro momento, a Suprema Corte chegou a rejeitar a possibilidade de utilização desse estratagema. No caso Loewe v. Lawlor, de 1908, um sindicato de chapeleiros, diante da recusa do empregador em aceitar a sindicalização dos seus empregados, promoveu um boicote nacional aos produtos da companhia (em uma época em que todos os homens usavam chapéus...). O empregador buscou o Judiciário, alegando que a ação violava a lei federal antitruste (Sherman Act) e cláusula do comércio interestadual, pois a “combinação” do sindicato obreiro favoreceria a concorrência. A Suprema Corte, com a composição bastante conservadora da Era Lochner, acolheu a tese.
Como reação a esse julgamento, o governo centrista de Woodrow Wilson editou o Clayton Act (1914), excluindo da incidência da lei antitruste os conflitos trabalhistas, como a greve, o piquete, o boicote e a negociação coletiva. Mesmo assim, a Suprema Corte continuou na sua toada antissindical. Em Duplex Printing Press Co. v. Deering, de 1921, a corte constitucional americana entendeu que boicotes “secundários” não estavam protegidos pelo Clayton Act. Por boicote secundário entenda-se a tentativa de pressionar empresas (fornecedores, clientes, patrocinadores) que fazem negócios com o empregador cuja conduta é questionada pelo sindicato. Aliás, nesse sentido, o que o movimento Sleeping Giants fez em relação à Jovem Pan pode ser classificado como um boicote secundário.
Em 1932, o Congresso dos EUA aprovou o Norris-La Guardia Act, para ampliar as garantias ao movimento sindical e um pouco mais adiante, já sob a administração progressista de Franklin D. Roosevelt, o governo federal promoveu ampla proteção aos sindicatos, com a edição do National Labor Relations Act (1935), legalizando assim, de forma nacionalmente uniforme, as práticas sindicais de negociação coletiva, incluindo o boicote. Sinalizando o fim da Era Lochner e uma tolerância aos boicotes trabalhistas, a Suprema Corte decidiu em 1938 o interessante caso New Negro Alliance v. Sanitary Grocery, no qual uma associação civil de militantes negros promoveu o boicote denominado “não compre onde você não pode trabalhar”, que tinha como alvo um mercado situado em bairro de densa população de afrodescendentes, mas que só contratava trabalhadores brancos. A Suprema Corte rejeitou a alegação da empresa de que o protesto não tinha natureza trabalhista e, portanto, estaria fora da proteção da Lei Norris-La Guardia, respaldando, assim, a legitimidade do boicote.
Esse caso serviu como exemplo de estratégia bem sucedida para a National Association for the Advancement of Colored People (NAACP), que nas décadas seguintes organizou ou apoiou inúmeros boicotes a estabelecimentos comerciais que praticavam a segregação racial, sendo o mais notável deles aquele liderado por Rosa Parks contra a empresa que operava ônibus segregados em Montgomery, Alabama. Esses boicotes foram considerados como constitucionais pela Suprema Corte, que, finalmente, em 1982, no caso NAACP v. Claiborne Hardware Co., afirmou com todas as letras que o boicote, se tiver objetivos políticos, é uma forma de expressão protegida pela Primeira Emenda.
Neste ano de 2023, estará na pauta da Suprema Corte outro interessante caso relativo a boicote e liberdade de expressão (Arkansas Times LP v. Waldrip). Nos últimos anos, 34 estados (a grande maioria governados pelo Partido Republicano) aprovaram leis proibindo boicotes ao governo de Israel ou a produtos e serviços originários daquele país. O estado do Arkansas editou uma norma pela qual qualquer empresa com contrato com o governo estadual deve assinar uma cláusula em que se abstém de qualquer tipo de boicote contra Israel. O proprietário do jornal Arkansas Times, Alan Leveritt, que tem contrato de venda de assinaturas para vários órgãos públicos, recusou-se a aceitar a cláusula, por entender que a exigência viola, em tese, a liberdade de expressão e de imprensa. Embora Leveritt ou seu jornal jamais tenham se engajado em campanhas anti-Israel, ele não descarta que alguém possa fazê-lo nas páginas de sua publicação.
Em democracias como a dos EUA e do Brasil, nas quais o capitalismo tem profundo impacto no equilíbrio das forças democráticas, parece ser de fundamental importância preservar o boicote como uma forma legítima de ação política sustentada na liberdade de expressão. Vejamos como as cortes constitucionais, nos dois países, responderão a esse desafio.

suprema corte dos eua

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JOTA

Processo por reparação de danos seria difícil nos EUA

A desmonetização da Jovem Pan e os boicotes no direito americano

Em democracias como EUA e Brasil, parece ser fundamental preservar o boicote como forma legítima de liberdade de expressão