Opinião e Análise

Vanessa Vilela Berbel

“O que é crime na vida real deve ser considerado crime no mundo digital”, sustentou o presidente <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/lula">Lula</a>, em 17 de julho, durante reunião da Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (Celac) ao defender a urgência da regulamentação das plataformas digitais para combater ilícitos cibernéticos e a desinformação. Fica a dúvida: o que nos falta é legislação ou condições materiais para a prevenção de delitos e punição dos agressores?
Até 24 de setembro de 2018, quando passou a vigorar a <a href="http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2018/lei/L13718.htm">Lei 13.718/18</a>, a divulgação de fotos íntimas de ex-namoradas, ex-esposas, ex-companheiras ou qualquer outra mulher, maior de 18 anos, configurava apenas crime de injúria, um tipo penal considerado de menor potencial ofensivo. Hoje, porém, superamos as lacunas legislativas punitivas e temos um vasto arcabouço normativo para sustentar a punição de crimes digitais<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>, dentre os quais destaco a Convenção de Budapeste sobre o Crime Cibernético (Decreto 11.491, de 12 de abril de 2023).
Portanto, não é que o país careça de legislação, sendo a vasta previsão normativa um dos principais fatores que lhe garantiu o 3º lugar das Américas em segurança digital pelo <a href="https://www.weforum.org/reports/global-cybersecurity-outlook-2023">Global Security Index</a>. O que falta no cenário digital, que também é uma carência no mundo real, são condições materiais para execução das tarefas previstas pela legislação, principalmente na seara da segurança pública.
O abrupto aumento das violações de direitos em ambiente virtual representa desafio exponencial ao sistema de segurança pública até para países desenvolvidos. Estudo empírico realizado na Austrália<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a> revelou três grandes desafios: (a) a quantidade acelerada da carga de trabalho à medida que o crime cibernético se torna um problema social maior; (b) a incompatibilidade de recursos das unidades em relação ao aumento da demanda; e (c) o nível insuficiente de habilidades e treinamento dentro das unidades para lidar com a natureza única e as complexidades crescentes do policiamento do crime cibernético. Embora realizado em outro contexto, estes parecem desafios relevantes para o cenário brasileiro, que passa por uma forte reconfiguração da prática de crimes, os quais migraram da realidade física para a vida digital, como anunciam os dados estatísticos atuais do <a href="https://forumseguranca.org.br/publicacoes_posts/17-anuario-brasileiro-de-seguranca-publica/">Fórum Brasileiro de Segurança Pública</a>.
A ausência de preparo do aparato de segurança pública estatal para lidar com crimes cibernéticos foi apontada no diagnóstico que embasou a criação da <a href="https://www.gov.br/governodigital/pt-br/estrategias-e-politicas-digitais/estrategia-nacional-de-seguranca-cibernetica">Estratégia Nacional de Segurança Cibernética</a> (E-Ciber) do Ministério de Justiça e Segurança Pública para o quadriênio de 2020-2023, ainda engatinhando em sua implantação.
Deste modo, se falta ao Estado condições estruturais para investigar, processar e punir os crimes virtuais, quais estratégias nos restam para assegurar os direitos das mulheres e meninas de não serem violadas na esfera digital? Apostamos, como resposta, em uma regulamentação das plataformas digitais que defina um sistema preventivo alinhado aos esforços globais já existentes.
<a href="https://indicadores.safernet.org.br/helpline/helplineviz/helpchart-page.html">Dados da SaferNet Brasil,</a> associação sem fins lucrativos destinada à promoção e defesa dos direitos humanos na internet, apontam para a necessidade de reforço de políticas de proteção de direitos das mulheres e meninas no ambiente virtual. Em 2022, os principais tópicos tratados nos atendimentos da associação foram sobre proteção de dados virtuais e exposição de imagens íntimas, sendo a maior procura por atendimento vinda do público feminino.
Vale notar que dos atendimentos realizados pela <a href="https://indicadores.safernet.org.br/helpline/helplineviz/helpchart-page.html">SaferNet</a> em 2022, 3.308 foram especificamente de sexting, também conhecido como exposição íntima, quando são enviados conteúdos eróticos por aplicativos e por redes sociais, em forma de texto, de fotos ou de vídeos. Na mesma toada, o Painel de Dados da <a href="https://www.gov.br/mdh/pt-br/ondh/painel-de-dados/primeiro-semestre-de-2023">Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos</a>, Ligue 180, informa que, em 2023, foram 3.998 denúncias de violações praticadas, no ambiente virtual, contra mulheres entre 25 e 59 anos.
O Brasil é o terceiro país que mais consome redes sociais em todo o mundo. Segundo <a href="https://forbes.com.br/forbes-tech/2023/03/brasil-e-o-terceiro-pais-que-mais-consome-redes-sociais-em-todo-o-mundo/">a pesquisa “Tendências de Social Media 2023”, conduzida pela Comscore, </a> são aproximadamente 131,5 milhões de usuários no Brasil que passam cerca de 46 horas por mês em plataformas digitais, distribuídos principalmente entre YouTube, Facebook e Instagram, seguida por TikTok, Kwai e Twitter. A política de funcionamento destas plataformas não é clara e, conforme alertou Frances Haugen, ex-engenheira de dados do Facebook, entre lucro e segurança digital, a opção pende para o capital.
A denúncia de Haugen se compatibiliza com as descobertas de Marianna Spring, jornalista da BBC que criou uma conta falsa de “trollagem”<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>, em 2021, para investigar e entender os motivos do ódio misógino que sofria nas redes sociais. Sua conclusão foi que eram falsas as afirmações das redes sociais de que levavam extremamente a sério ataques online contra mulheres e que aplicavam rigorosamente regras para proteger as usuárias dos abusos.
Spring também testou os algoritmos em relação à linguagem abusiva sobre mulheres, criando uma persona online falsa nas cinco redes sociais mais populares do Reino Unido. O resultado foi igualmente alarmante: ao final de duas semanas, passou a receber sugestão em seu perfil de conteúdos que envolviam violência sexual, compartilhamento de memes perturbadores sobre atos sexuais e conteúdos que endossavam o estupro, assédio e violência de gênero.
Em meio às polêmicas sobre segurança e privacidade, o Facebook anunciou, em novembro de 2021, a reformulação de suas políticas, dentre elas a exclusão de dados de reconhecimento facial extraídos das imagens de 1 bilhão de pessoas, e que deixaria de oferecer a marcação automática em fotos e vídeo. Contudo, as mudanças não foram suficientes para afastar outros escândalos como o rastreamento não autorizado de endereço de IPs, objeto de <a href="https://forbes.com.br/forbes-tech/2022/08/meta-chega-a-acordo-em-processo-de-rastreamento-de-localizacao-do-facebook/">ação coletiva perante o Poder Judiciário da Califórnia</a> (EUA).
O <a href="https://counterhate.com/">Center For Countering Digital Hate</a> (CCDH) revela diariamente os furos de segurança de diversas plataformas digitais. Em setembro de 2022, o grupo de trabalho sobre violência de gênero apresentou à Casa Branca <a href="https://counterhate.com/wp-content/uploads/2022/09/Submission-White-House-Taskforce-to-address-Online-Harassment-and-Abuse-TFGBV-Consultation-September-2022-1.pdf">uma proposta sobre padrões globais para a reforma das mídias sociais</a>, visando garantir eficácia, conectividade e consistência para um setor que impacta as mulheres globalmente.
A proposta da CCDH é focada nos pilares denominados “STAR Framework” e pontua a atenção a cinco elementos essenciais: S – Segurança pelo designer (Safety by Design); T- Transparência (Transparency), A- Auditoria democrática e independente (Accountability to democratic and independent bodies) e R- Responsabilidade da companhia e dos gestores (Responsibility for companies and their senior executives).
Segurança pelo designer consiste em um compliance prévio à oferta de produtos e serviços que assegure, pelas estruturas de seu desenvolvimento, aptidão na prevenção e interrupção de eventuais abusos.
Essa estratégia preventiva de desenvolvimento associada à (i) transparência sobre as políticas aplicados aos usuários e aos algoritmos, (ii) obrigatoriedade das plataformas possuírem auditoria externa independente que assegure sua efetividade e (iii) responsabilização severa dos gestores e das firmas que deixem de cumpri-las parece eficiente para coibir a disseminação de desinformação, discurso de ódio, misoginia, extremismo e violência em modelos de negócios pautados pelos lucros. Ela depende, contudo, de uma prévia análise das autoridades antes da disponibilização dos produtos e serviços digitais, bem como um controle diuturno de suas operações.
Enquanto não contemplarmos regulamentos e estruturas sólidas para garantir que as plataformas digitais correspondam aos pilares STAR, a divulgação não autorizada da intimidade ainda prejudicará a saúde mental de tantas outras mulheres e meninas, sem dúvida o público mais impactados pelos abusos e violência em uma sociedade marcada pelo machismo estrutural.
<hr />
<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> O Brasil possui legislações sólidas sobre o tema, como Lei 12.737/12 (Lei Carolina Dieckman), Lei 12.965/14 (Marco Civil da Internet), Lei 13.441/17 (permite a infiltração de agentes de polícia na Internet), Lei 13.709/18 (LGPD).
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> Diarmaid Harkin, Chad Whelan &amp; Lennon Chang (2018). The challenges facing specialist police cyber-crime units: an empirical analysis, Police Practice and Research, 19:6, 519-536, DOI: <a href="https://doi.org/10.1080/15614263.2018.1507889">10.1080/15614263.2018.1507889</a>
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> O termo vem do verbo “troll”, que, entre seus significados possível, conforme tradução oferecida pelo Cambridge Dictionary, pode ser “alguém que deixa uma mensagem intencionalmente irritante ou ofensiva na internet, a fim de incomodar outrem, chamar-lhe a atenção ou causar-lhe problemas” (tradução da autora).

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JOTA

O que nos falta é legislação ou condições materiais para a prevenção de delitos e punição dos agressores?

Regulação das plataformas digitais e a proteção de mulheres e meninas

Quais estratégias nos restam para assegurar os direitos das mulheres e meninas de não serem violados nas plataformas digitais?