Opinião e Análise

Amanda Flávio de Oliveira

Tem sido consistente a reação da academia e de outros agentes diretamente envolvidos contrariamente ao conteúdo da <a href="https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=9252819&amp;ts=1680542091944&amp;disposition=inline&amp;ts=1680542091944">Emenda Parlamentar 54</a>, incluída no projeto de conversão da <a href="https://www.congressonacional.leg.br/materias/medidas-provisorias/-/mpv/155651">MP 1154</a>, a qual reorganiza os ministérios para o novo governo. Em poucas linhas, a EP 54 cogita transferir para um conselho, vinculado aos ministérios e secretarias, a atividade de produção normativa das agências reguladoras, e, para tanto, fundamenta-se, em sua justificação, no princípio da separação de Poderes constitucionalmente consagrado.
Os vários textos constantes de artigos de jornais e notas públicas têm permitido, desde então, uma oportunidade de se retomar as origens e o significado da regulação por agências reguladoras em nosso país. Este breve artigo pretende contribuir para esse resgate, tão oportuno em época de crises de modelo, buscando acrescentar a ele aspectos menos referenciados e à busca da identificação de mitos e verdades da regulação por agências<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a> no Brasil.
<h3>Um pouco de história</h3>
O modelo de regulação por agências reguladoras foi instituído no país a partir da década de 1990, sustentando-se na disciplina constitucional de intervenção direta (art. 173) e indireta (art. 174) do Estado na economia, conforme previa a recém-promulgada Constituição de 1988. Em alguns casos, ao processo de privatização de empresas estatais sucedeu a criação de uma agência reguladora no setor; em outros, a agência significou a mudança de natureza jurídica do ente estatal responsável pela regulamentação do setor, substituindo-se a ação estatal por via de ministérios pela atuação pela via de autarquias especiais.
O propósito mencionado para esse movimento, àquela ocasião, consistia em atrair investimento privado, sinalizando ao mercado uma postura de afastamento estatal da economia e opção por sua subsidiariedade no trato econômico. Para atingir esse fim, instituía-se a regulação do setor por técnicos, com notório conhecimento no mercado em questão, e eles seriam dotados de mandato, entre outras medidas que confeririam independência à entidade e aos seus dirigentes.
À época, houve grande reação à proposta, sobretudo por parte daqueles que nela identificavam uma guinada rumo a um “Estado neoliberal” no Brasil. O modelo foi implantado, mas com resistência. Uma das críticas, de ordem constitucional, consistia exatamente na possível vulneração do princípio da separação de Poderes que o modelo propiciava, ao conferir poder normativo a entidades da administração pública que não se submeteriam a controle hierárquico.
<h3>Um pouco de contemporaneidade</h3>
Passadas quase três décadas da implantação do modelo, algumas constatações precisam ser feitas com sobriedade.
A preocupação com uma suposta guinada liberal a partir da instituição desse modelo não se confirmou. <a href="https://www.enap.gov.br/pt/acontece/noticias/raio-x-da-regulacao-economica-e-publicado-pela-primeira-vez-no-brasil">Estudo da Enap</a> avaliou a produção normativa regulatória no Brasil desde 1950 e evidenciou um expressivo aumento quantitativo de normas regulatórias a partir da criação das agências. Os dados levam a crer não ter havido exatamente afastamento do Estado do mercado com a adoção do modelo, mas apenas a opção por uma nova forma de atuar. Medidas recentes como a obrigatoriedade de realização de impacto regulatório previamente à produção normativa, instituída pela Lei 13.848/2019, e a criação do ilícito do abuso de poder regulatório, instituído pela Lei 13.874/2019, podem ser consideradas tentativas de se equilibrar esse ponto. Não há tempo, contudo, para se avaliar sua eficácia real a esse título e há razões consistentes para duvidar da sua capacidade de solucionar a contento um possível diagnóstico de excesso normativo<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>.
O propósito de se conceder independência e autonomia às agências nem sempre se confirmou. Não raro, ao longo das três décadas, identifica-se indicação de nomes para as suas diretorias afastados das exigências técnicas; por vezes, o governo demora na indicação de nomes para os cargos diretivos, mantendo agências sem quórum como forma de fragilizar sua atuação; a independência orçamentária tem sido constantemente posta em teste; e iniciativas dos Poderes, sobretudo do ministro da pasta à qual a agência se vincula, surpreendem as agências com inversão da proposta de tecnicismo. A instituição de uma lei marco das agências reguladoras no país pode ser identificada, claramente, como uma tentativa de se corrigir alguns desses problemas. Resta saber se ela tem a capacidade de se constituir em um efetivo modificador do sistema de incentivos envolvidos na questão.
O problema original dos limites do poder normativo das agências reguladoras segue presente. O Judiciário tem sido constantemente chamado a enfrentá-lo. A análise das decisões judiciais a esse respeito revela, ora uma atitude de deferência ao poder regulamentar delas, ora uma atitude de recusa. Aparentemente, o conteúdo material do ato normativo tende a favorecer ou desfavorecer na balança da justiça da manutenção do ato. A se confirmar essa impressão, identifica-se um problema de autoridade técnica delas a ser enfrentado <a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>.
O diagnóstico de um possível êxito do projeto em seu propósito de instituir um incentivo ao investimento privado por meio da regulação por agências também recomenda uma análise mais criteriosa. Dados revelam que, historicamente, as empresas mais reclamadas nos órgãos estatais de defesa do consumidor têm sido integrantes de mercados regulados por meio de agências<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>. Da mesma maneira, a experiência revela que quanto maiores as barreiras regulatórias em um dado setor, mais números de processos administrativos por infração à concorrência são instaurados no Conselho Administrativo de Defesa Econômica (<a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/cade">Cade</a>), autarquia responsável por resguardar a livre concorrência no país. De fato, é inevitável concluir que regulação ocasiona, necessariamente, algum grau de fechamento do mercado. Quanto mais fechado o mercado, maior a probabilidade de exercício de abuso de poder econômico, vedado pela Constituição<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a>.
<h3>Sobre fundamentos</h3>
Nesse contexto, é importante recordar que o modelo de regulação por agências que se desenvolveu no Brasil inspira-se fortemente no correlato americano. Entretanto, impende entender que as agências americanas surgiram exatamente em um momento em que aquele país arrefecia o livre mercado que lhe é característico, e as agências surgiram exatamente momentos em que o país fazia a opção pelo intervencionismo<a href="#_ftn6" name="_ftnref6">[6]</a>.
<h3>Sobre mitos, verdades e lições</h3>
A apresentação da EP 54 oportunizou a reflexão sobre o significado e a importância efetiva da regulação por agências realizada no Brasil. Para empreender uma análise frutífera, há que se debruçar serenamente sobre os dados, os fatos, e as ideologias subjacentes na discussão.
Em última análise, o que deve motivar a intervenção estatal na economia, em todas as suas formas, deve ser a busca do desenvolvimento econômico do país, que aproveita às pessoas. Há motivos para se questionar os resultados obtidos a título de promoção do desenvolvimento econômico do país, por intermédio do Estado, no decorrer das últimas três décadas, até os dias atuais. São muitos os indicadores de que o país está distante de um padrão desejável: o ainda baixo acesso a saneamento, sobretudo a tratamento de esgoto; a pobreza persistente, realçada em estudo recente do Unicef, que informou haver 32 milhões de crianças e adolescentes no Brasil em situação de privação, são pequenas e agudas amostras desse cenário. Se pela intervenção o Estado assumiu a responsabilidade de ser agente ativo na promoção do desenvolvimento, há algo a se questionar.
É sempre preciso avaliar com imparcialidade, dados e experiência essa pretendida capacidade efetiva do Estado de produzir desenvolvimento. Toda a discussão impulsionada pela apresentação da EP 54 não pode deixar de fora a constatação de que há fragilidades também no próprio modelo de regulação por agências. Fechar os olhos a eles não ajuda ao objetivo que deve ser a todos comum: eliminar distorções que geram a manutenção de uma situação de falta de acesso a serviços e produtos por parte da população brasileira. Se se conclui que a EP 54 não resolve o problema, que ela seja descartada, mas outros caminhos precisariam ser construídos, em busca de resultados mais alvissareiros para os problemas que ainda persistem.
<hr />
<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> A autora adota a concepção que  classifica em duas as formas de intervenção estatal na economia: direta (art. 173 da CR/88) e indireta (art. 174 da CR/88). Por sua vez, regulação constitui qualquer forma de intervenção indireta do Estado na economia, e a regulação por meio de agências reguladoras é uma das espécies possíveis disso. Neste texto, os três termos são utilizados, segundo essa concepção.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> A esse título, confira, por exemplo: <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/mulheres-na-regulacao/a-regulamentacao-da-air-esta-engessando-as-escolhas-regulatorias-28032023">https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/mulheres-na-regulacao/a-regulamentacao-da-air-esta-engessando-as-escolhas-regulatorias-28032023</a>
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> É bastante elucidativa dessa situação o voto proferido pela Presidente do STF na ADPF 532-MC, que versava sobre norma da ANS elaborada após AIR e consulta pública e que versava sobre coparticipação.
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> Confira a título de exemplo, o portal do governo federal que lista as matérias mais reclamadas: <a href="https://app.powerbi.com/view?r=eyJrIjoiNmY4ZDRhMzYtMDYxNS00MjA0LWE2MjItOGIyNDZiMzEwNThjIiwidCI6ImViMDkwNDIwLTQ0NGMtNDNmNy05MWYyLTRiOGRhNmJmZThlMSJ9">https://app.powerbi.com/view?r=eyJrIjoiNmY4ZDRhMzYtMDYxNS00MjA0LWE2MjItOGIyNDZiMzEwNThjIiwidCI6ImViMDkwNDIwLTQ0NGMtNDNmNy05MWYyLTRiOGRhNmJmZThlMSJ9</a>
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> Nesse sentido, manifestou-se o Economista-Chefe do CADE, Guilherme Resende, em <a href="https://www.youtube.com/watch?v=PTDyF7raGHc">webinar promovido pela Comissão de Direito Regulatório da OABMG</a>.
<a href="#_ftnref6" name="_ftn6">[6]</a> É fundamental para se entender as origens americanas das agências a leitura do livro MCCRAW, Thomas K.. Prophets of regulation: Charles Francis, Adams Louis D. Brandeis, James M. Landis, Alfred E. Kahn. Massachusetts: Harvard, 1984.

Congresso Nacional

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JOTA

Se se conclui que a EP 54 não resolve o problema, que ela seja descartada, mas outros caminhos precisariam ser construídos

Mitos e verdades sobre regulação por agências

Se se conclui que a EP 54 não resolve o problema do modelo de regulação por agências, que ela seja descartada