Opinião e Análise

Lucia Helena Salgado

A personalidade mais marcante do antitruste nas Américas dos dias atuais é uma jovem de 34 anos chamada Lina Khan. Khan lidera o movimento de juristas estadunidenses empenhados em recuperar o espírito do antitruste, conhecidos como neo-Brandesianos. A referência é ao jurista e membro da Suprema Corte no início do século 20, Louis Brandeis, que sistematizou em doutrina constitucional a ideia Jeffersoniana de democracia baseada na descentralização de poder, doutrina denominada por ele de “A Nova Liberdade” (The New Freedom).
Brandeis percebia, desde a virada do século 19 para o século 20, que os “trustes” retiravam a capacidade dos estadunidenses conduzirem seus próprios negócios. A concentração de capital financeiro e econômico havia se tornado tão gigantesca que controlá-la com instrumental regulatório lhe parecia tarefa impossível. Desfazer concentrações excessivas e impedir a formação de novos monopólios deveria ser tarefa central do governo.
Brandeis esteve longe de ser um proponente isolado do ativismo antitruste no início do século 20, antes como advogado e, após 1916, indicado por W. Wilson, como membro da Suprema Corte. A radicalidade e consistência do seu discurso, articuladas ao seu compromisso inarredável com o interesse público tornaram-no um símbolo do espírito genuinamente “antitruste”.
Sob sua inspiração, jovens juristas formados nas universidades mais prestigiosas dos Estados Unidos (do grupo das Ivy League, como Yale, Harvard e Columbia) vêm ocupando o debate público com suas ardorosas defesas – amparadas em ampla pesquisa empírica, ressalte-se – em favor da retomada das origens do antitruste na América<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>. Trata-se, segundo eles, de retomar o ideal de uma sociedade onde há liberdade para empreender, para escolher, para deter propriedade.
Nas últimas quatro décadas, a aplicação da legislação antitruste nos EUA, a metodologia de análise e as decisões pelo Judiciário refletiram a prevalência da doutrina e metodologia desenvolvidas em Chicago, calcada em microeconomia introdutória<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>: efeitos de preço no curto prazo associados ao “bem-estar do consumidor”.
Marco de uma guinada de direção na condução da política antitruste estadunidense foi a indicação por Joe Biden, em 2021, de Lina Khan para a presidência da Federal Trade Commission (FTC)<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>. Com a indicação, Biden sinalizou apoio à perspectiva ativista e contrária à excessiva concentração de poder econômico observada nas últimas décadas.
O programa posto em marcha pelo FTC a partir de 2021 é tão ambicioso quanto arriscado, visto que esbarra em dois obstáculos poderosos: um Judiciário predominantemente composto por juízes treinados na doutrina de Chicago e o prazo muito curto – a princípio um mandato de quatro anos – para retomar a rota da defesa do processo concorrencial, após décadas de desvio. Contudo, Lina Khan e equipe demonstram que não se intimidam com o tamanho do desafio que enfrentam; transcorrida a metade do mandato de Lina Khan à frente da FTC, três contestações a práticas e aquisições das <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/big-techs">Big Techs</a> foram apresentadas ao Judiciário.
Todas essas iniciativas redundaram em fracasso. A contestação, ainda em 2021, das aquisições do Instagram em 2012 e do WhatsApp em 2016 pelo grupo Meta, sob a alegação de monopolização das redes sociais, foi rejeitada ainda em 1ª instância pelo Judiciário, que entendeu que a FTC não havia demonstrado a condição de monopolista da Facebook, visto que os usuários não pagariam pelos serviços e não havendo preços, não haveria poder de monopólio.
Sem se abater, Lina Khan e equipe interpuseram em 2023 outras duas ações contestando a superdominância das Big Techs. A primeira foi a contestação da aquisição pela Microsoft da Activision Blizzard em 2022, passo estratégico para a Microsoft manter sua posição no mercado relevante de jogos eletrônicos. Novamente, a FTC foi derrotada no Judiciário, tendo seus pedidos de medida cautelar e bloqueio da operação negados. O Judiciário entendeu como medida suficiente para dar sinal verde à operação o comunicado de dirigente da companhia em rede social de que a empresa assinara termo de compromisso com validade de dez anos para manter o acesso da Sony (por sua plataforma PlayStation) aos jogos Call of Duty e OverWatch.
A segunda ação movida pela FTC é contra a Amazon e seu serviço Prime. A ação ataca a prática da conhecida na literatura econômica antitruste como obsfuscation e cancelation trickery, ao obrigar os usuários a assinarem serviços Prime não demandados e dificultar o processo de cancelamento.
Está ainda em preparação outra ação contra a Amazon, envolvendo sua estratégia de “espalhamento”, com o uso do marketplace para explorar os pequenos fornecedores que usam sua plataforma, no limite inviabilizando-os economicamente. Trata-se aqui de outra forma de prática exclusionária, denominada no jargão margin squeeze.
Lina Khan ganhou notoriedade ainda muito jovem, quando em 2016, estudante em Yale, publicou no jornal da universidade o artigo “<a href="https://www.yalelawjournal.org/pdf/e.710.Khan.805_zuvfyyeh.pdf">The Amazon Paradox</a>”. Ali ela desfechou golpe certeiro – a começar pela paródia inscrita no título – à abordagem convencional do antitruste, seu caráter estático e “curto-prazista”, o que a tornava incapaz de lidar “com a arquitetura do poder de mercado na economia moderna”, nas palavras da própria autora.
O tempo voa e a atual condução da FTC parece disposta a não perder um único segundo. Tanto que está em consulta pública proposta de<a href="https://www.ftc.gov/news-events/news/press-releases/2023/07/ftc-doj-seek-comment-draft-merger-guidelines"> novos Guidelines</a> para fusões e aquisições (como sempre, em parceria com a Divisão Antitruste do Departamento de Justiça), proposta essa que representa transformação radical na fundamentação e metodologia de análise de operações de concentração até agora em vigor. A proposta tem recebido apoio e encontrado oposição igualmente intensos.
Os Guidelines são acompanhados de justificativas apoiadas em grande número de julgados da Suprema Corte, anteriores à prevalência da doutrina de Chicago, a fundamentar a mudança de perspectiva, de pressuposto de eficiência nos atos de concentração para o pressuposto estrutural de dano à concorrência como resultado de fusões em mercados oligopolistas. A alteração de pressuposto implica uma espécie de inversão do ônus da prova: caberá às empresas adquirentes ou às partes em fusão demonstrar que a concentração não gera danos à concorrência, não mais à agência demonstrar que a operação pode gerar danos.
A análise em pormenor da proposta de novos Guidelines é assunto para um outro artigo. Por ora, se pode concluir que não falta ousadia e disposição para o combate de parte de Lina Khan e sua equipe. Contudo, é realista supor que, assim como as primeiras ações que tentaram combater a concentração excessiva de poder econômico nas mãos das Big Techs redundaram em fracasso, as novas ações preparadas com base em sólida economia da concorrência poderão ter resultado idêntico – em vista da formação doutrinária da maioria dos integrantes de tribunais superiores nos EUA. Também se pode esperar que a proposta em consulta de Guidelines encontrará forte resistência e sofrerá consideráveis alterações. A despeito disso, o antitruste não será mais o mesmo depois de Lina Khan.
<hr />
<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> Lina M. Khan, “Amazon Antitrust Paradox” in Yale Law Journal, vol. 126, issue 3, article 3, November, 2016; Tim Wu, The Curse of Bigness, Antitrust in the New Guided Age, Columbia Global Reports, 2018; Jonathan Tepper and Denise Hearn The Myth of Capitalism - Monopolies and the Death of Competition,  Wiley, 2018; John Kwoka Mergers, Mergers Control and Remedies: A Retrospective Analysis of U.S. Policy MIT Press, 2014.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> Teoria microeconômica, ou “Price Theory”, como denominada pelos autores de Chicago, e sistematizada na obra de Robert Bork, The Antitrust Paradox, a Policy in War with Itself, de 1978, em que o autor rechaça qualquer outra motivação do legislador para aprovar a legislação antitruste que não a preocupação com eficiência e níveis de preços.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> O FTC autoridade antitruste com competência para questionar judicialmente operações e práticas que visem a criar ou reforçar posições de monopólio.

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JOTA

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