Opinião e Análise

Ricardo Lagreca Siqueira

<h3>O início de uma jornada pela desjudicialização</h3>
Apesar de já advogar há três décadas, foi há 14 anos que passei a me incomodar com a quantidade de processos judiciais de consumidores que temos no Brasil.
Desse incômodo, algumas experiências que vivi passaram a fomentar em mim uma mudança de percepção quanto ao problema da alta judicialização, algo que sobrecarrega a Justiça, cria custos para o país, afasta investimentos. E o principal: não atende o consumidor da forma mais eficiente. Isso fez nascer um verdadeiro propósito em mim: o de trabalhar para que os conflitos nas relações de consumo passassem a ser resolvidos de forma consensual e menos custosa para a sociedade.
Pensando primeiro em meu próprio universo, cada processo iniciado contra a empresa em que trabalhava significava uma falha nossa, seja nos produtos ou serviços prestados, seja na forma como lidávamos com o problema em nosso atendimento ou ouvidoria. Passei a defender que, como empresa, temos que nos sentir indignados quando falhamos com nossos consumidores!
Se, por um lado, estas ações judiciais demonstravam erros e oportunidades para melhorarmos enquanto empresa, também impunham um enorme custo para a sociedade.
Segundo o estudo “Justiça em Números 2021”, publicado pelo Conselho Nacional de Justiça (<a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/cnj">CNJ</a>), o Brasil gasta 1,3% de seu PIB com a Justiça, o que corresponde a 11% dos gastos totais da União, dos estados, do Distrito Federal e dos municípios. De modo algum quero defender a redução da quantidade de fóruns, varas ou dos salários dos servidores. Porém, a verdade é que com esse gasto de mais de R$ 100 bilhões poderíamos ter a melhor Justiça do mundo, com processos ágeis e sem a taxa de congestionamento que temos hoje, na casa de 73%.
Em levantamento feito em 2017, cada processo no juizado especial custava para o estado cerca de R$ 650. O mais impressionante é que, em um período de cinco anos no estado do Rio de Janeiro — considerado o mais litigante do Brasil —, o custo com processos movidos por consumidores foi de R$ 1,6 bilhão, consideradas apenas as ações contra as 30 empresas mais demandadas. O pior é que pelo menos 57,46% destes processos poderiam ter sido evitados, pois os consumidores utilizaram a via judicial antes mesmo de tentarem contato com as empresas.
Em evento realizado nos Estados Unidos em 2016 que reuniu mais de 4.000 diretores jurídicos e profissionais do direito, foram apresentadas experiências de diversas empresas multinacionais que encontraram dificuldades em atuar no Brasil, chegando a encerrar suas atividades sob a justificativa de que o excesso de litigiosidade nas relações de consumo inviabilizou sua continuidade no país. Chegaram a mencionar que, por mais que as empresas estivessem de boa-fé e prontamente substituíssem produtos com qualquer tipo de defeito, eram condenadas por valores (incluídos danos morais) que superavam em até 10 vezes o valor dos produtos. Era um passivo inesperado para essas empresas que tinham decidido investir no Brasil.
Em comparação com países vizinhos, verifica-se que o nível de litigiosidade no Brasil alcançou patamares únicos (14 vezes mais que na Argentina, por exemplo), o que impõe um alto custo às organizações. Esse fato acaba por inviabilizar o investimento ou por ser repassado como custo para os próprios consumidores, prejudicando-os.
Seria injusto não reconhecer os ganhos ao consumidor que observamos nos primeiros anos de vigência do <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/cdc">CDC</a> e da ampla política pública adotada para a sua proteção. Não obstante, ter o processo judicial como via única ou preferencial para a resolução de conflitos não parece estar em consonância com as necessidades atuais dos próprios consumidores, das organizações, do governo e da sociedade.
<h3>Benefícios das soluções extrajudiciais</h3>
Hoje a tecnologia aplicada à resolução online dos conflitos apresenta excelentes níveis de resolutividade. Um exemplo é o aplicativo Consumidor.gov.
Se compararmos esse aplicativo, ou os canais online para resolução de disputas (ODR), com a via judicial veremos as seguintes vantagens:
[caption id="attachment_370837" align="aligncenter" width="946"]<img class="wp-image-370837 size-full" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2022/05/captura-de-tela-2022-05-18-145657.png" alt="judicialização" width="946" height="504" /> Crédito: Divulgação[/caption]
Há muita discussão sobre a utilização da via conciliatória online e extrajudicial como passo anterior necessário ao ingresso da ação judicial. Sob o meu ponto de vista, devemos utilizar a racionalidade para resolver essa questão.
Se pensarmos na área da saúde, por exemplo, garantir o acesso direto ao Judiciário, sem qualquer filtro, seria como garantir o acesso de todos os pacientes à sala de operação, com cirurgião, anestesista etc. para um paciente que apresenta uma mera dor de cabeça.
Os hospitais, assim como os fóruns, têm altos custos e seus profissionais qualificados são limitados. Assim, uma triagem para separação dos casos leves, urgentes e emergenciais é essencial para o melhor atendimento à população.
Utilizar aplicativos como o Consumidor.gov como passo anterior à ação judicial, sem impedir que posteriormente a ela se possa recorrer, garantiria um melhor atendimento àqueles consumidores que realmente precisam da tutela do Estado, garantindo decisões melhores e mais rápidas. Os custos e impactos ambientais seriam bem menores também.
<h3>Empreendendo por conta própria</h3>
O fato é que não podemos ficar parados! Esperar de braços cruzados uma grande mudança legislativa não é uma opção. Precisamos buscar alternativas. O primeiro passo foi formar uma equipe focada na prevenção e não no litígio. Não é uma tarefa fácil.
O processo de mudança cultural e contratação de novos integrantes com afinidade a essa cultura foi um desafio que durou alguns anos. Os profissionais do direito geralmente se formam entendendo que a solução para todos os males é a judicialização. O formalismo e a hierarquia são inerentes a grande parte dos profissionais de nossa profissão.
Uma equipe diversa, qualificada e motivada faz toda a diferença. Em um ambiente de confiança mútua e pouca hierarquia, as inovações encontram espaço naturalmente. Assim, o propósito da desjudicialização passou a ser de todos da equipe.
Decidimos que não queríamos ganhar processos contra nossos clientes, mas sim que eles continuassem sendo nossos clientes.
Avaliar as causas dos problemas a partir das demandas que chegam, comunicar outras áreas da empresa, dar sugestões e construir soluções conjuntas é um caminho essencial para quem quer melhorar a relação com seus consumidores. Assim, o primeiro passo foi a criação da área preventiva dentro da equipe.
Em 2012, inovamos no departamento jurídico da Sky ao criar os “totens” instalados dentro dos fóruns e Procons. Estes equipamentos valiam-se do último momento antes do protocolo das demandas para tentar conectar os consumidores e/ou seus advogados com a área de atendimento da empresa, evitando milhares de novos processos. Essa prática rendeu em 2012 o Prêmio Conciliar é Legal, concedido pelo CNJ, e nos mostrou que estávamos no caminho certo.
Em 2016, já no Mercado Livre, criamos o projeto Action em conjunto com a área de atendimento, podendo ser definido como uma mediação pós-judicial atípica, onde nossa área de mediação interna, agindo antes da realização da primeira audiência, conectava vendedores e compradores e apresentava uma solução para o conflito. Foram milhares de processos encerrados antes da primeira audiência em um movimento educativo para os vendedores não reincidirem e para os consumidores tomarem ciência que a empresa disponibilizava ferramentas online para a resolução dos conflitos na própria plataforma. Essa prática rendeu o Prêmio Conciliar é Legal de 2016.
Em 2019, produzimos com o marketing da empresa um vídeo explicativo sobre a melhor forma para os consumidores resolverem qualquer problema na plataforma antes de buscar o caminho judicial, iniciando por nossa ferramenta de solução de disputas online e, em caso de insucesso, buscando o Consumidor.gov. Foram mais de 45 milhões de visualizações e, mais uma vez, milhares de processos evitados.
Agora estamos testando um novo projeto, que tem como tecnologia um sistema computacional preditivo baseado em dados, visando a antecipar as necessidades de atendimento dos consumidores que estão enfrentando problemas a fim de apresentarmos proativamente uma solução mais rápida e satisfatória. O objetivo não podia ser outro: fazer com que nossos consumidores fiquem mais satisfeitos ao evitarmos milhares de processos judiciais.
<h3>Resultados</h3>
Ao longo do tempo, medimos a evolução destas medidas no índice de judicialização provocado por nossa empresa e concluímos que houve uma redução de 90% em comparação com o índice de 14 anos atrás (detalhe no gráfico abaixo):
[caption id="attachment_370839" align="aligncenter" width="1092"]<img class="wp-image-370839 size-full" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2022/05/captura-de-tela-2022-05-18-150303.png" alt="judicialização" width="1092" height="491" /> Crédito: Divulgação[/caption]
Outro indicador que nos dá orgulho é que atualmente conseguimos resolver 98,5% dos problemas de nossos consumidores por intermédio de nossa própria plataforma, sendo o 1,49% restante resolvido via Consumidor.gov, Reclame Aqui, Procons e somente 0,01% pela via da Justiça Especial Cível ou Justiça Comum.
Ainda temos muito o que percorrer nesse caminho para a desjudicialização, mas a sensação de estarmos fazendo a nossa parte se reflete na alegria com que trabalhamos todos os dias. O melhor ainda está por vir, pois nosso propósito continua mais presente do que nunca. Os números permitem fazermos um convite aos demais colegas a terem o mesmo objetivo e demonstram que é possível trocarmos a postura litigante por uma cultura mais ágil para resolver conflitos — e mais benéfica aos cofres públicos.

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JOTA

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