Opinião e Análise

Thiago Brazolin

Pagar e não levar. No mundo financeiro, esta situação é inadmissível, e por este motivo o mercado investe muito dinheiro e tecnologia na liquidação das operações.
A chamada liquidação é a etapa final numa cadeia de transferências ou negócios, que podem ser ordens de pagamento, compra de títulos públicos e privados ou até mesmo de valores mobiliários. Nesta etapa, as ordens são efetivamente cumpridas e cada parte recebe o que lhe é devido. A liquidação pode ocorrer de várias formas, podendo ser em tempo real ou diferida, bruta ou pelo valor líquido. Em certo sentido, a forma como uma operação é liquidada define como ela pode ocorrer e quais os riscos das partes envolvidas.
Até o final deste texto vamos abordar o que é tokenização e como essa tecnologia pode melhorar o ambiente de negócios quando falamos em liquidação, mas para chegar nesse ponto, é preciso lembrar como chegamos até aqui.
Se hoje o grande público está acostumado com a liquidação instantânea do <a href="https://portal.jota.info/tudo-sobre/pix">Pix</a>, no passado recente não era assim. Em 2002, o sistema financeiro nacional passava por uma grande reforma, com a criação do Sistema de Pagamentos Brasileiro (SPB) e o chamado Sistema de Transferência de Reserva (STR).
Tais mudanças tiveram por objetivo modernizar as relações financeiras no país, reduzindo os riscos de liquidação nas operações entre os bancos (evitando o “paguei e não levei” que falamos acima), e reduzindo o risco sistêmico, conhecido como o “efeito dominó”, pelo qual o descumprimento das obrigações de um banco – sua quebra – contamine as demais instituições.
Isso foi possível porque o STR opera como um “sistema de liquidação bruta em tempo real” (art. 1º, p. ún. da Circular 3.100 do <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/banco-central">Banco Central</a>). Isso significa que uma transferência de fundos é condicionada à existência de saldo suficiente de recursos de quem está emitindo a ordem. 
Daí que tivemos a criação da Transferência Eletrônica Disponível (TED), que possibilitou a transferência de recursos entre pessoas com a liquidação no mesmo dia (mas não aos finais de semana). Para quem lembra dos famigerados “cheque-borracha” ou “cheque-bumerangue” (cheques cuja compensação era rejeitada por falta de fundos), o TED foi um alívio e impulsionou novos negócios.
Mesmo o TED, que foi um grande avanço na vida dos usuários, hoje encontra concorrência no Pix. A alta adesão ao Pix certamente pode ser atribuída em parte – senão em quase o todo – às características favoráveis de uso que decorrem do Sistema de Pagamentos Instantâneo (SPI), que permite a liquidação de operações vinte e quatro horas por dia, sete dias por semana. 
Sem limite de valor, disponível a todo momento, podendo ser utilizado por detentores de conta em instituições financeiras e instituições de pagamento, o Pix avançou sobre outros produtos mais limitados, promovendo alterações no dia a dia das pessoas.
As diferenças entre os sistemas de liquidação e as evoluções em andamento são ilustrativas do ponto principal deste artigo: quais os impactos que uma nova tecnologia como a tokenização podem trazer para os produtos que nela se sustentam?
Até agora, todos os produtos e serviços de que tratamos tem um aspecto em comum, porque tratam de uma operação com um “tipo de ativo” – dinheiro desmaterializado, transformado em dados num computador – para um pagamento, uma transferência pontual de uma parte à outra. No entanto, quais tipos de arranjos e pontos específicos são encontrados quando temos uma liquidação de maior complexidade?
Suponha que o ativo em questão pague juros periódicos, ou possa vir a ser utilizado como garantia de outras operações? Sistemas de liquidação que atendem a estes requisitos já existem, como a Plataforma Centralizada de Recebíveis (PCR), que cuida de boletos, e o Sistema de Liquidação Diferida das Transferências Interbancárias de Ordens de Crédito (SILOC), que atua paralelamente ao Serviço de Liquidação de Cartões (SLC), para liquidar as operações realizadas com cartão de crédito incluindo as garantias feitas com elas, tudo conforme determinado pela Resolução Banco Central 150/21.
Um bom sistema de liquidação deve garantir certeza sobre a titularidade dos ativos, e que transferências totais ou parciais ocorram exatamente conforme os comandos inseridos pelas partes. Isso pode ser feito mediante um controle centralizado, ou permitindo que certas empresas façam alguma parte nessa cadeia de eventos, tal como as registradoras que constituem os direitos sobre recebíveis de cartões, algo crucial na liquidação destas operações.
Com isso, observa-se que como em outros serviços, toda liquidação envolve a atenção de diversos profissionais, bem como o emprego de tecnologias avançadas, o que por sua vez resultam em custos relevantes. A otimização deste processo geraria ganhos de escala para todo o mercado, e por este motivo que busca de alternativas é sempre bem-vinda e relevante.
 Um dos caminhos a ser explorado é tokenização de ativos, que utiliza tecnologias normalmente associadas às criptomoedas para oferecer novas formas de negociação e liquidação de ativos já conhecidos, e que no Brasil pode ser impulsionada pelo Drex.
A palavra token, raiz do anglicismo tokenização, não é uma expressão originária do mundo virtual. Os chamados tokens são utilizados em sistemas fechados como representações de valor, sendo equivalentes às fichas de cassinos ou créditos em lavanderias comunitárias. Nas discussões de tokenização no mundo financeiro, entende-se que este processo é justamente o registro das informações sobre certos ativos em sistemas criptografados, baseados em redes distribuídas. Um token pode ser criado para diversas finalidades, sendo geralmente divididos entre security tokens, payment and exchange tokens e utility tokens.
Os payment and exchange tokens podem ser entendidos como criptomoedas atualmente disponíveis no mercado, que servem para fazer pagamentos e negócios – ainda que exista uma discussão se são moedas de verdade. Por outro lado, os utility tokens dão direito de uso ou acesso para algum serviço ou produto. Todavia, apesar do falso cognato, aqui vamos tratar de security tokens, que não lidam com segurança, e sim com títulos de todo tipo, que passam a ser representados pelos referidos tokens.
No Brasil, a discussão sobre tokenização ganha corpo a partir da segunda década dos anos 2000. A Resolução CVM 88/22, redigida com foco nas regras de crowdfunding e o mercado de equity de empresas de pequeno porte, serviu como base o mercado desenvolver serviços e produtos para as ofertas destes tokens. 
De forma complementar, no Ofício Circular CVM/SSE 4/2023 e no Ofício Circular CVM/SSE 6/2023, a Comissão de Valores Mobiliários (<a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/cvm">CVM</a>) aprofundou no seu entendimento sobre esses produtos, algo que era muito esperado pelo mercado em desenvolvimento acelerado.
Em 2023, a Comissão de Valores Mobiliários entendeu que o modelo de crowdfunding previsto na Resolução CVM 88/22 é um caminho possível para a oferta destes tokens, desde que o emissor respeite algumas regras, tal como limitar a captação a R$ 15 milhões, observar um prazo de 120 dias de intervalo entre ofertas e um teto de R$ 20 mil por ano-calendário para investimentos realizados por investidores em geral.
As limitações previstas na norma são decorrentes da aplicação da norma de crowdfunding para o mercado de equity. Apesar dos jargões em inglês, estamos falando do mercado de negociação de participações em empresas, de forma parecida com a bolsa de valores, mas voltado às empresas menores. Pode parecer contraintuitivo, mas captar recursos por meio do mercado de bolsa requer capital e organização que muitas empresas não possuem, o que limita o acesso destas empresas a formas de custeio de suas atividades que não seja o mercado bancário.
Por outro lado, o mercado de dívida, incluindo os ativos baseados em recebíveis de cartão, se presta a negociar ativos lastreados nesses créditos, transferindo a titularidade deles entre as partes. Este tipo de mercado permite que empresas realizem diversos arranjos comerciais complexos, diminuindo seus riscos e recebendo antecipadamente valores que, de outra forma, estariam sujeitos aos prazos contratados. Esse mercado se tornou tão relevante nos últimos anos que a CVM, ao emitir os Ofícios Circulares 4 e 6, tratou de tokens de recebíveis e tokens de renda fixa no mesmo documento.
Feitas estas considerações, até o momento nós afirmamos que a tecnologia na liquidação foi decisiva para uma revolução na forma com que as pessoas fazem pagamentos, e que ainda existem muitos desafios na liquidação de outros tipos de operações. Resta tratar do impacto da tokenização sobre os mercados de equity e crédito/dívida.
Observando o entendimento da CVM sobre o assunto, vemos que o modelo de crowdfunding foi desenhado visando garantir a segurança do investidor em captações de menor volume, o que demanda emissões estanques, vinculadas ao emissor e limitadas por travas temporais e de valor. Daí que faz sentido a limitação ao mercado secundário de grande volume encontrada no art. 15 da Resolução CVM 88/22. 
Segundo este artigo, sugestivamente sob o título “Transações Subsequentes”, as plataformas eletrônicas não podem, dentre outros elementos importantes para um mercado secundário, disponibilizar um sistema centralizado e multilateral para os usuários, ou permitir a atuação de formadores de mercado. Para termos a formação de um mercado secundário, incrementando a liquidez dos tokens negociados nas plataformas de crowdfunding, seria preciso conciliar a proteção do investidor com o fomento deste novo mercado.
Das várias questões a serem discutidas este fomento de um mercado secundário de tokens que seja seguro e rentável ao investidor, a liquidação é uma que já possui uma resposta possível: o Drex, o projeto de moeda digital de banco central (CBDC), criado e operado pelo Banco Central. Atualmente, o Drex se encontra na segunda fase do projeto-piloto, no qual a moeda digital será utilizada para liquidar operações multiativos, conforme as propostas dos participantes. 
Vale destacar que o Drex, em sua concepção, se prestou a realizar operações com representações digitais de Depósitos Bancários à Vista (DVt), Moeda Eletrônica (MEt) e Títulos Públicos Federais (TPFt), conforme art. 16 da Resolução BCB 315/2023, que aprovou o Regulamento do Piloto RD.
Com a alteração promovida pela Resolução BCB 382/2024, a implementação de smart contracts criados e geridos pelos terceiros participantes das plataformas passa a ser possível. Isso significa que novos modelos de negócio podem ser testados, o que nos remete ao tema da tokenização tratada acima. Em relação ao Drex, vale lembrar que o projeto, desde a sua concepção, trabalha sob três premissas: privacidade, descentralização e programabilidade.
Quando falávamos das várias funções e atividades que um sistema de liquidação deve desempenhar, a possibilidade de um token ser negociado, e por meio de um smart contract, ver a operação sendo liquidada em Drex, com transferências instantâneas, descentralizadas e seguras, é exatamente o tipo de funcionalidade que diferenciaria o estágio atual da negociação de tokens para um próximo nível.
É neste âmbito que o Centro de Regulação e Inovação Aplicada (CRIA) tem atuado: a busca de soluções colaborativas, fomentando o debate e auxiliando a CVM no desenvolvimento do arcabouço regulatório compatível com as novas tecnologias que estão surgindo.

Drex moeda digital

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JOTA

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