Opinião e Análise

Thais Gutparakis de Miranda

Isadora Cohen

O acesso a água é um dos principais indicadores selecionados pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), para avaliar a qualidade de vida da população mundial.
De fato, a disponibilidade de água própria para o consumo está diretamente relacionada com a qualidade de vida, uma vez que a quantidade e a potabilidade da água distribuída afetam a higiene, o bem-estar e a saúde da coletividade.
<a href="https://www.jota.info/produtos/poder?utm_source=Banner%20site&amp;utm_medium=Artigos&amp;utm_campaign=CTA_Poder_materias"><img class="size-medium wp-image-292717 aligncenter" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2021/01/jota-pro-poder.jpg" alt="" width="688" height="688" /></a>A literatura que trata da água potável refere-se, principalmente, às quantidades necessárias para o consumo humano. A Organização Mundial da Saúde considera que a quantidade mínima razoável gira em torno de 20 a 50 litros e, como valor ótimo, indica entre 100 a 200 litros por dia.
Muito embora o acesso à água seja essencial para o desenvolvimento socioeconômico, com reflexos diretos sobre as condições de saúde e bem-estar da população, a Constituição brasileira não prevê expressamente esse direito. Contudo, através de uma interpretação hermenêutica, pode-se concluir que este decorre do direito à vida (art. 5º, caput) e do direito à saúde (art. 6º, caput), aos quais corresponde um dever do Estado (art. 196 da Constituição).
Na mesma linha do texto constitucional, a Lei nº 9.433/1997, que instituiu a Política Nacional de Recursos Hídricos e criou o Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos, também não se preocupou com o direito individual de acesso à água ou com o dever de universalização por parte do Poder Público, limitando-se a prever, dentre os seus fundamentos, que a água é um bem de domínio público e um recurso natural limitado, dotado de valor econômico.
Somente com o advento da Lei nº 11.445/2007<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>, que estabeleceu as diretrizes nacionais para o saneamento básico, é que a universalização do acesso aos serviços de água e esgoto foi reconhecida como um princípio fundamental (art. 2º, inciso I) e foram introduzidos alguns contornos inclusivos, com a previsão de subsídios tarifários e não tarifários para assegurar a prestação dos serviços aos cidadãos e localidades de baixa renda (art. 29, § 2º).
No âmbito internacional, a Assembleia Geral da ONU, em 2010, por meio da Resolução A/64/292, estabeleceu que o acesso à água potável e ao saneamento é um direito humano essencial para a plena fruição da vida e de todos os outros direitos humanos e exortou os Estados e organizações internacionais para fornecer recursos financeiros, capacitação e transferência de tecnologia, através da assistência e cooperação internacionais, em particular aos países em desenvolvimento, a fim de intensificar os esforços para fornecer a todos acesso à água limpa, segura, e com preço razoável.
A adoção da referida Resolução pela ONU foi celebrada pela comunidade internacional, por representar o reconhecimento de que a ninguém deve ser negada água necessária para viver, em contraposição à visão da água exclusivamente como bem econômico e oportunidade de lucro.
Recentemente, com a pandemia do novo coronavírus, ficou ainda mais evidente a necessidade de universalização dos serviços de saneamento básico, a fim de se garantir a todos, sem distinção, o acesso à água e ao tratamento de esgoto. Sem esse acesso, de forma ampla, as medidas de combate ao vírus têm alcance e efetividade limitados, pois basta uma pessoa em risco, para que a coletividade também esteja.
No complexo cenário brasileiro, marcado por fortes desigualdades sociais, que se materializam em condições precárias de moradia, baixo acesso à educação e saúde de qualidade, é temerário falar de universalização dos serviços de água e esgoto sem considerar os que se encontram em situação de vulnerabilidade, em especial os ocupantes de áreas irregulares, como favelas e palafitas, comunidades e povos tradicionais, localidades de difícil acesso e população rural, que via de regra não são contemplados pelas políticas públicas distributivas.
Desse modo, a efetiva disponibilidade dos serviços de abastecimento de água e de esgotamento sanitário à população mais vulnerável não depende somente do aporte de investimentos para o desenvolvimento da infraestrutura necessária, mas também está condicionada à implementação de uma política pública inclusiva, que possibilite ao cidadão de baixa renda usufruir dos serviços mediante o pagamento de um valor diferenciado – a tarifa social.
<blockquote class="jota-article__eye">Assim, a tarifa social – que também pode ter outras denominações (popular, reduzida, etc.) – é um subsídio tarifário, que visa fundamentalmente à inclusão da população em situação de vulnerabilidade, incapacitada de pagar o valor regular dos serviços.</blockquote>
De modo geral, os prestadores de serviços de abastecimento de água e de esgotamento sanitário oferecem a tarifa social, de acordo com os critérios de elegibilidade estabelecidos pelo Poder Público ou pelo Ente Regulador. Dentre tais critérios, é bastante comum a exigência de inscrição no Cadastro Único para Programas Sociais do Governo Federal (CadÚnico), que unificou diversos sistemas de cadastros e se consolidou como o principal instrumento que identifica e caracteriza as famílias de baixa renda, possibilitando a sua seleção e inclusão em programas sociais.
Além disso, também costumam ser utilizados como critérios para a concessão do benefício: a renda familiar, as características construtivas do imóvel e o consumo mensal de água ou de energia elétrica.
A título ilustrativo, no Distrito Federal, em que os serviços são operados pela Companhia de Saneamento Ambiental do Distrito Federal (CAESB), para ter direito à tarifa social, basta que o titular da conta de água seja beneficiário do Programa Bolsa Família e esteja com CPF cadastrado e atualizado no CadÚnico.
Já no estado de São Paulo, para os municípios atendidos pela SABESP, são aplicáveis as seguintes condições para enquadramento na categoria social: possuir renda familiar de até 3 (três) salários mínimos; ser morador de habitação com área útil construída até 60m2; ser consumidor de energia elétrica com consumo de até 170kwh/mês e não haver débitos para o imóvel. Ou ainda, estar desempregado, desde que: o consumo máximo seja de até 15m3; o beneficiário seja o titular da conta há mais de 90 (noventa) dias; o último salário tenha sido de até 3 (três) salários mínimos; a demissão não tenha ocorrido por justa causa; não haja débitos ou débitos negociados.
No Rio de Janeiro, as condições de acesso ao benefício são mais complexas. A tarifa social é regulamentada pelo Decreto 25.438/99 que dispõe sobre a fixação de cota mínima de água e esgoto para imóveis residenciais em áreas de interesse social.
O referido decreto, que é bastante confuso, indica que seriam beneficiários da tarifa social os imóveis residenciais, situados nas áreas consideradas de interesse social, sendo essas áreas definidas pelo Secretário de Estado de Saneamento e Recursos Hídricos. Não está claro que áreas seriam estas e quais os critérios para defini-las, já que a definição de áreas de especial interesse social é atribuição dos municípios, através dos planos diretores de desenvolvimento urbano, regulamentados por lei.
A Companhia Estadual de Águas e Esgotos do Rio de Janeiro (CEDAE), entretanto, menciona em seu sítio eletrônico o mencionado Decreto e traz a relação dos possíveis beneficiários: moradores de favelas, ocupantes de imóveis localizados em conjuntos habitacionais construídos pelo Sistema Financeiro de Habitação para população com renda familiar até 5 (cinco) salários mínimos, ocupantes de habitações populares destinadas às famílias de baixa renda em terrenos cedidos por órgãos públicos federais, estaduais e municipais e ocupantes de imóveis em áreas de interesse social para residências até 50 m2 e comércios até 30 m2, situados em loteamentos irregulares, em área de posse, periferia de favelas e áreas de risco com impossibilidade de vistoria para apuração da área construída.
Vê-se, portanto, que a CEDAE define a tarifa social pela localização/condição da moradia e não pela situação socioeconômica do usuário.
Estabelecido um comparativo, observa-se uma multiplicidade de critérios para a concessão da tarifa social, o que acaba por restringir o acesso aos serviços, conforme o rigor das exigências estabelecidas em cada município.
Dada a importância do tema e as discrepâncias existentes, há projetos de lei em tramitação no Senado e na Câmara dos Deputados, que buscam unificar as regras e conferir um mínimo de uniformidade nos programas que instituem o benefício, visando ampliar o seu alcance.
Embora se afigure de extrema importância a disponibilização de infraestrutura, para ampliação da cobertura de água e de esgoto, a universalização precisa avançar ainda mais, para contemplar aqueles que não têm domicílio, os que não têm condições financeiras de arcar com as ligações para conexão às redes e ainda os que estão impossibilitados de pagar o valor integral das tarifas. Somente assim será possível assegurar, de fato, o acesso à água potável e ao saneamento como direito humano essencial.
Para além de constatar a relevância do tema, agora é preciso discutir como devem ser estruturados esses subsídios nos arranjos de concessões. E, ainda, com advento de novas normas que visam a concessão dos subsídios, se e como serão tratados os eventuais impactos em concessões vigentes.
<hr />
<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> Atualizada pela Lei nº 14.026/2020.

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JOTA

Multiplicidade de critérios para a concessão da tarifa social acaba por restringir o acesso aos serviços

Tarifa social: subsídio para garantir direito de acesso aos serviços de água e esgoto

Multiplicidade de critérios para a concessão da tarifa social acaba por restringir o acesso aos serviços