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O incentivo ao reúso e reaproveitamento das águas por meio de concessões

Previsões do novo Marco do Saneamento podem ajudar o Brasil frente a uma crise hídrica iminente

reaproveitamento de águas por meio de concessões
Crédito: Pixabay

O saneamento básico nunca esteve tanto em evidência no Brasil. O país busca superar há décadas os péssimos índices dos serviços públicos do setor, tendo obtido como resultado, no entanto, apenas tímidos avanços. De acordo com o Relatório Luz[1], são 34 milhões de pessoas sem acesso a água tratada e mais de 100 milhões sem serviço de coleta de esgoto no país. Esse cenário será agravado no futuro, principalmente referente à disponibilidade de água. Segundo a International Food Policy Research Institute, estima-se que mais da metade da população global estará afetada pela escassez de água em 2050[2].

A Lei 14.026/2020, alcunhada de novo Marco Legal do Saneamento Básico, determina que todos os contratos de prestação de serviço de saneamento prevejam metas para o reuso de efluentes sanitários e do aproveitamento de águas de chuva. Essa previsão legal vai ao encontro da agenda da sustentabilidade e ressalta que é irreal cogitar alcançar a meta de universalização com concessões que não se comprometam com a pauta da sustentabilidade.

O que se constata mediante a análise dos últimos editais e contratos de concessão no setor de saneamento básico, no entanto, é que o clausulado sobre reuso e  reaproveitamento de água não vêm sendo incluído, ou, quando existente, é genérico, um mero adorno para cumprir uma exigência legal.

Essa falta de preocupação com o tema ignora que reuso de águas é medida indispensável no contexto de escassez do recurso. O reuso é medida primordial para que se obtenha níveis de cobertura de fornecimento de água potável próximos a 100% sem que haja limitação de outras atividades produtivas, de serviços ou de recreação que também necessitem do recurso.

Diante desse panorama, a gestão integrada das águas urbanas pode ser usada para que se atinja uma administração do recurso mais adequada. A aplicação desse mecanismo permitiria acabar com a fragmentação no gerenciamento das águas, bem como integrar a condução de políticas públicas referentes ao abastecimento, ao saneamento, ao manejo das águas pluviais, à irrigação urbana e ao manejo dos resíduos sólidos.

Embora incipientes, há experiências de sucesso no reuso concretizadas mediante parceria entre a Administração Pública e a iniciativa privada. A título exemplificativo, destaca-se: (i) o Projeto Aquapolo, que possibilitou a reciclagem do esgoto tratado na Estação de Tratamento da Sabesp no ABC Paulista, fornecendo-o para as indústrias da região em uma área com baixa disponibilidade hídrica e, assim, promovendo uma economia no uso de água equivalente ao consumo de água potável da cidade de Santos (SP); e (ii) o projeto de despoluição do rio Pinheiros, em São Paulo, no qual a remuneração do setor privado é baseada na melhoria da qualidade dos efluentes lançados no rio.

Esses empreendimentos demonstram que o clausulado quanto ao reuso e aproveitamento, se bem desenhado, pode ser uma boa oportunidade de negócio para concessionária prestadora do serviço. O setor privado tem a capacidade de absorver essa obrigação nos contratos de  concessão, podendo as soluções referentes ao reuso se tornarem um negócio rentável para concessionária e, até mesmo, uma fonte de receita acessória.

A tarefa da Administração Pública de gestar bons editais de concessão, com previsões sobre reuso robusto e bem estruturado, pode contar com o auxílio de parceiros privados por intermédio da promoção de Procedimento de Manifestação de Interesse e Audiências Públicas. Esses instrumentos ajudarão a estabelecer um diálogo com o setor privado e a sociedade civil, alcançando, possivelmente, melhores soluções.

Adicionalmente, cabe também o aprimoramento da outorga de direito de uso de recursos hídricos, uma vez que, como desenhada hoje, pouco versa sobre ações para melhorar ou preservar a qualidade das águas. Além da concessionária do serviço público de saneamento, outros privados também recebem outorgas, muitas vezes não onerosas, para o uso do mesmo recurso água.

A cobrança pelo uso de recursos hídricos por particulares é um avanço importante e necessário, mas também merece uma reflexão: será que o valor cobrado está precificado na perspectiva de escassez e importância da atividade que utiliza dos recursos hídricos face à manutenção da vida humana e da biodiversidade local que depende do mesmo recurso hídrico? A partir do ponto de vista presente na indagação, a composição do preço do recurso presente no valor da outorga deveria espelhar as taxas de tratamento e reutilização da água pelo agente que a usa.

Porém, não basta apenas cobrar o privado. É essencial que os termos da outorga sejam respeitados. O órgão fiscalizador, muitas vezes, tem limitações estruturais para atuar de forma eficaz no controle do uso dos recursos hídricos. Nesse aspecto, deve ser revisto o papel da concessionária, que pode se tornar uma guardiã da sua bacia de atuação. A concessionária, aliás, dispõe das melhores condições para verificar se os volumes outorgados estão sendo respeitados e mensurar os impactos na bacia da sua área de atuação.

Ante o exposto, além das ações pontuais, é fundamental a concepção de uma política nacional efetiva para o uso racional e o reuso da água em todos os setores: agrícola, industrial, comercial, de serviços e residencial. Para tanto, é necessário que se estabeleça um diálogo democrático e transparente com todos os atores que podem contribuir com o avanço de iniciativas referentes ao reuso do recurso. Nessa seara, se destaca a revisão do papel das concessionárias de saneamento no monitoramento e preservação dos recursos hídricos.

Há um longo caminho pela frente, de reflexões, discussões, criação ou alteração de políticas públicas, ações e reações para não apenas alcançar a tão sonhada universalização, mas também para melhor aproveitar as inúmeras oportunidades oferecidas pelo setor do saneamento.


[1] Grupo de Trabalho da Sociedade Civil para a Agenda 2030. III Relatório luz da sociedade civil da agenda 2023 de desenvolvimento sustentável: Brasil. Disponível em: https://brasilnaagenda2030.files.wordpress.com/2019/09/relatorio_luz_portugues_19_final_v2_download.pdf. Acesso em 14 de junho de 2023.

[2] IUCN. Water and climate change. Disponível em: https://www.iucn.org/resources/issues-brief/water-and-climate-change. Acesso em 14 de junho de 2023.logo-jota