Coronavírus

Concessões federais de infraestrutura aeroportuária e efeitos da pandemia

Resolução ANAC 528/19 e solução alternativa de conflitos

Foto: Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil

Prosseguindo em mais uma abordagem[1] sobre os efeitos da pandemia de Covid-19 nas concessões federais de infraestrutura aeroportuária, analisaremos, neste momento, aspectos da normatização aplicável ao setor e os meios alternativos de se ultimar as controvérsias que poderão surgir ao longo deste processo.

A Agência Nacional de Aviação Civil (ANAC), por meio da Resolução nº 528, de 28 de agosto de 2019, disciplinou a forma e o procedimento a serem adotados nos processos de revisão extraordinária dos contratos de concessão federal de infraestrutura aeroportuária[2].

Da norma, se extrai uma importante premissa que deverá ser observada em todos os procedimentos de revisão extraordinária, inclusive nos decorrentes da pandemia, por mais improvável que possa parecer: a necessária compensação entre perdas e ganhos.

Significa dizer que, no momento de análise dos procedimentos de revisão extraordinária, caberá às partes, pautadas pela boa-fé contratual, declarar e documentar não apenas as perdas, mas igualmente os ganhos que, porventura, decorreram dos eventos potencialmente classificados e alocados na matriz de riscos do Poder Concedente como força maior ou caso fortuito.

O prazo preclusivo estabelecido na referida regulamentação é de cinco anos, contado da data do evento. No caso de impacto contínuo no tempo, será contado do início do impacto nas receitas e custos da concessionária.

Não se imagina o transcurso desse prazo no caso da pandemia, até mesmo porque a Medida Provisória nº 925/20, que dispõe sobre medidas emergenciais para a aviação civil brasileira em razão da pandemia, ao alterar o prazo máximo para pagamento de todas as contribuições fixas e variáveis para até 18 de dezembro de 2020, gerou um natural e claro incentivo para a conclusão, até essa data, das primeiras eventuais análises sobre pleitos de revisão extraordinária em virtude da crise.

Também cabe destacar que a norma estabelece a possibilidade de o Poder Concedente considerar a inclusão de outros eventos cujo risco esteja expressamente alocado ao Poder Concedente naqueles procedimentos iniciados a pedido das concessionárias.

Buscou-se consagrar o princípio da eficiência e, especialmente, evitar a tramitação desnecessária de expedientes diversos com a mesma finalidade de preservar o equilíbrio econômico-financeiro dos contratos.

Relativamente à instrução processual do pedido de revisão extraordinária, importante dizer que é elementar a construção adequada da narrativa fática que descreva o evento e o enquadre na matriz de risco contratual, bem como a documentação que evidencie o efeito do evento nos custos e receitas da concessão, trazendo-se relatórios técnicos e periciais sobre os efeitos constatados ou projetados.

O impacto financeiro precisa, assim, ser decorrente do evento descrito e enquadrado na matriz de riscos e, mais ainda, é necessário o estabelecimento de um claro nexo de causalidade que demonstre que o impacto descrito decorreu direta ou indiretamente do evento narrado.

Caso se constate a insuficiência da instrução processual, fica a critério do Poder Concedente o indeferimento do pleito ou a intimação da concessionária para a adequação da instrução.

Destaca-se que, nos diversos pedidos já julgados pela ANAC, o que se observa é a permanente tentativa do Poder Concedente de ver suprida a deficiência processual antes do eventual arquivamento do pedido, que, como não poderia deixar de ser, não impede novo pleito sobre o mesmo evento, observado o quinquênio já mencionado.

Além da previsão de que pode ser necessária a contratação de empresa especializada e independente para a análise e a elaboração de laudos econômicos e documentos específicos, a norma estabelece que as demonstrações financeiras devem todas estar de acordo com a legislação brasileira e, especialmente, com as normas tributárias e contáveis, evitando, com isso, o surgimento de divergências ligadas aos apontamentos financeiros.

Caso sejam necessários laudos sobre investimentos em obras ou serviços relacionados a obras, a norma da ANAC prevê que tais documentos devem ser elaborados segundo as melhores práticas e critérios de mercado.

Em que pese a norma se refira aos laudos sobre investimentos e obras, a mesma disposição parece disciplinar eventuais laudos econômicos ou documentos econômicos que venham a ser elaborados pelas entidades independentes contratadas pela concessionária, com possibilidade de veto pelo Poder Concedente.

Não haverá sigilo nos pedidos de revisão extraordinária e, portanto, pode-se afirmar que a regra será a publicidade ampla, estabelecida, em especial, pela Lei nº 12.517/11 (Lei de Acesso à Informação), ressalvados eventuais sigilos empresariais e aqueles resguardados pela legislação específica.

É importante, nesse sentido, que as concessionárias indiquem expressamente os documentos cuja classificação reportem necessária, uma vez que a regra geral é de publicidade ampla, ostensiva e irrestrita.

A metodologia para a recomposição do equilíbrio escolhida pelos contratos e pela norma da ANAC é a do fluxo de caixa marginal elaborado para cada um dos eventos geradores de desequilíbrio. Busca-se, nessa metodologia, calcular e estabelecer uma compensação financeira que anule os efeitos negativos ou positivos do desequilíbrio.

Decerto que, no fluxo de caixa marginal, o Poder Concedente irá considerar os dispêndios marginais resultantes do evento e as eventuais receitas marginais. Ao lado disso, estima-se que os efeitos da pandemia possam se espraiar por muitos anos da concessão, além daqueles que já podem ser quantificados, notadamente no período decorrido entre o início do impacto financeiro da pandemia e a primeira recomposição que se opere no contrato.

Nessa ordem de ideias, vislumbra-se que o procedimento de recomposição pode necessitar de mais de uma etapa e que, somente ao longo dessas, seja possível o ajuste fino para se capturar todos os efeitos econômicos e financeiros com a máxima precisão. Não apenas aqueles efeitos passados e documentados, mas também aqueles projetados e futuros, e, portanto, ainda incertos.

Constatado assim o evento, verificado seu potencial impacto, enquadrada a ocorrência na matriz de riscos contratual, documentados os efeitos financeiros nos custos e receitas da concessionária, observada a metodologia de fluxo de caixa marginal, restará ao Poder Concedente a tarefa final de fixar a forma como procederá à recomposição do equilíbrio dentre aquelas estabelecidas no Decreto nº 7.624/11, previstas nos contratos de concessão e repetidas na Resolução ANAC nº 528/19.

A escolha deverá representar a melhor opção ao interesse público, assim compreendida como a mais eficiente e adequada para o devido restabelecimento do equilíbrio. O rol de medidas de recomposição do equilíbrio contém algumas previsões usuais, como a alteração do valor de tarifas ou do prazo dos contratos, além de outras previsões mais específicas, como a revisão dos valores de contribuição ao sistema (outorgas) ou outra forma consensualmente estabelecida.

Para a revisão de contribuições ou para outra forma residual e consensual de restabelecimento do equilíbrio, os contratos e a norma da ANAC estabelecem a necessidade de prévia aprovação do Ministério da Infraestrutura, especialmente em razão da destinação dos recursos das concessões[3].

À luz dos mencionados requisitos necessários à análise do reequilíbrio, caberá agora a ambas as partes de cada contrato um diálogo franco e documentado sobre o evento em si e os prejuízos decorrentes da pandemia (com a análise objetiva de causalidade e a demonstração clara de efeito no contrato).

Todo o histórico de casos já analisados e julgados pela ANAC demonstra que o tempo de análises sobre os pleitos de reequilíbrio econômico-financeiro dos contratos, tendentes à revisão extraordinária, é diretamente proporcional ao número de diligências necessárias para a conclusão técnica dos pedidos.

Isso significa dizer que é imperiosa a boa instrução processual do pedido e a apresentação dos necessários elementos probatórios para reduzir ou eliminar a necessidade de diligências. A diminuição das incertezas propicia, certamente, uma análise mais célere sobre os pleitos em questão.

Nesse contexto, importante destacar que, no caso de eventual necessidade de solução alternativa de conflitos, já se observam nas normas e contratos da ANAC, além da legislação que rege a matéria, os mecanismos suficientes para tal.

A disciplina contratual da ANAC sobre solução alternativa de conflitos, especialmente ligada ao equilíbrio econômico-financeiro dos contratos, evoluiu ao longo das cinco rodadas de concessão federal de aeroportos brasileiros.

Na primeira, segunda e terceira rodadas[4], as cláusulas arbitrais estão limitadas às indenizações decorrentes da extinção do contrato, com pouca variação, por exemplo, quanto à questão de custas, não contemplando a possibilidade de discussão sobre controvérsias envolvendo o reequilíbrio econômico-financeiro.

Até então, era tímido o enfrentamento da temática do reequilíbrio nas discussões concretas, e, ainda, em relação às formas e meios céleres de resolução dos conflitos.

A quarta rodada de concessão de aeroportos contou com um tempo maior de amadurecimento se comparada com o lapso ocorrido entre os leilões anteriores. Justamente nesse interregno sobrevieram duas importantes alterações legislativas que conferiram maior solidez à previsão de submissão de controvérsias ligadas ao equilíbrio econômico-financeiro dos contratos à arbitragem.

Primeiro, a Lei nº 13.129/15, que altera e complementa a Lei nº 9.307/96. Posteriormente, a Lei nº 13.448/17, fruto da conversão da Medida Provisória nº 752/16.

As alterações legislativas tornaram induvidosa a possibilidade de utilização da arbitragem para a resolução de conflitos envolvendo a administração pública, com ênfase para a discussão de controvérsias sobre reequilíbrio, listado como direito patrimonial disponível no artigo 31, parágrafo 4º, inciso I, da Lei nº 13.448/17.

Em que pese vigente a Medida Provisória nº 752 desde novembro de 2016, a concessão dos aeroportos da quarta rodada, ocorrida em março de 2017, contou com uma incipiente menção de que poderia o Poder Concedente regulamentar internamente a Lei nº 13.448/17 e disciplinar a possibilidade de submissão dos litígios à arbitragem.

Na prática, significa dizer que os aeroportos da quarta rodada (Fortaleza, Salvador[5], Florianópolis e Porto Alegre), assim como os das rodadas anteriores, dependem de aditivos contratuais para modificação da cláusula arbitral ou assinatura de compromissos arbitrais para discussão nesta via alternativa de eventuais controvérsias sobre reequilíbrios econômico-financeiros.

Por fim, a quinta rodada de concessão de aeroportos, leiloados em março de 2019, contém a cláusula arbitral mais atual dos contratos, prevendo expressamente que controvérsias sobre direitos patrimoniais disponíveis, listados na Lei nº 13.448/17, serão definitivamente resolvidas por arbitragem.

O Poder Concedente, impulsionado pela necessidade de manter os contratos atualizados e seguindo os ditames da Lei nº 13.448/17 e do Decreto nº 10.025/19, este último publicado em setembro de 2019, consolidando ainda mais a arbitragem no âmbito do setor de infraestrutura de transportes, negocia com as concessionárias das quatro rodadas anteriores a aditivação dos contratos de concessão para o estabelecimento de cláusulas arbitrais mais atuais e adaptadas às legislações citadas[6].

Nada obsta, como mencionado acima, que seja firmado compromisso arbitral sobre questões envolvendo reequilíbrio econômico-financeiro, como inclusive já realizado, recentemente, entre ANAC e Aeroportos Brasil Viracopos S/A., prevendo que os reequilíbrios dos contratos, judicializados ou não, serão, quando controvertidos em relação ao quanto decidido administrativamente, discutidos pela via arbitral.

De toda forma, o que se observa, tanto a partir do relatado neste artigo quanto pelo conteúdo do artigo passado, é que, de certo, o setor aéreo foi um dos mais afetados pela pandemia de Covid-19, contudo, seja pelos próprios contratos seja pelas normas da ANAC, estas robustamente ancoradas na legislação existente, já se possui mecanismos para o devido enfrentamento da crise, em relação aos equilíbrios contratuais e também no que tange à solução alternativa de conflitos. O que se espera, agora, como já dito, é diálogo, colaboração e boa-fé de todas as partes envolvidas.

É, nesse espírito, que o setor aéreo pretende se recuperar, e, ainda, sempre evoluindo em seus contratos e mecanismos regulatórios, conforme se observa nas minutas da sexta rodada de aeroportos, aprovadas pela diretoria da ANAC no dia 1 de julho de 2020[7].

 


[1] Essa série de análises sobre os efeitos econômico-financeiros da pandemia Covid-19 nos contratos de concessão federal de infraestrutura de transportes, medidas e formas de lidar com a questão, foi inaugurada em 02 de junho de 2020 (https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/infra/equilibrio-de-contratos-de-concessao-federal-de-infraestrutura-de-transportes-02062020), seguida de publicação em 26 de junho de 2020 (https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/infra/concessoes-federais-de-infraestrutura-aeroportuaria-e-desafios-da-pandemia-26062020), em que os autores fizeram, na primeira, uma abordagem mais geral sobre os efeitos da crise nas concessões federais de infraestrutura de transportes e os desafios a ela relacionados, e, na segunda, uma análise específica no âmbito do setor aéreo, com foco nos impactos e na disciplina contratual.

[2] Aplica-se, em adição, o texto de cada contrato de concessão, bem como as disposições da Lei de Processo Administrativo Federal, Lei nº 9.784/99.

[3] A Lei nº 12.462/11 cria o Fundo Nacional de Aviação Civil (FNAC), de natureza contábil e financeira, vinculado ao Ministério da Infraestrutura, que tem como missão fomentar o desenvolvimento do sistema de aviação e, para isso, implementa os recursos oriundos das outorgas e contribuições dos aeroportos concedidos em ações de manutenção e aprimoramento da infraestrutura aeronáutica e aeroportuária.

[4] Primeira rodada: aeroporto de São Gonçalo do Amarante – leilão realizado em agosto de 2011 e concessão iniciada em janeiro de 2012, com prazo de duração de 28 anos. Segunda rodada: aeroportos de Guarulhos, Brasília e Viracopos – leilão realizado em fevereiro de 2012 e concessões iniciadas em julho de 2012, com prazos de duração de, respectivamente, 20, 25 e 30 anos. Terceira rodada: aeroportos de Galeão e Confins – leilão realizado em novembro de 2013 e concessões iniciadas em maio de 2014, com prazos de duração de, respectivamente, 25 e 30 anos.

[5] Em relação ao contrato de concessão do aeroporto de Salvador, já houve publicação do termo aditivo contratual para a modernização da cláusula arbitral.

[6] Até a publicação deste artigo, apenas o contrato de concessão do aeroporto de Salvador havia sido aditivado, conforme mencionado.

[7] Mais informações em: <https://www.anac.gov.br/assuntos/paginas-tematicas/concessoes/sexta-rodada>.