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função pública

PEC da reforma administrativa: vale a pena retomar?

Proposta coloca em risco a modernização do RH do Estado

reforma administrativa
Esplanada dos Ministérios. Crédito: Ana Volpe/Agência Senado

No último dia 24, como noticiado pelo JOTA, o presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), defendeu que o próximo passo depois da reforma tributária seria retomar a reforma administrativa – a PEC 32/2020.

A PEC 32, que “altera disposições sobre servidores, empregados públicos e organização administrativa”, foi alvo de numerosas críticas negativas já em sua versão original.

Houve ceticismo quanto à estratégia do governo à época de reformar o RH do Estado inserindo mais dispositivos sobre o tema na Constituição – o que costuma matar qualquer reforma. A proposta também chamou a atenção por seu estilo museu de grandes novidades, recorrendo a soluções jurídicas já experimentadas no passado com poucos resultados.

A sociedade civil organizada esforçou-se para melhorar a proposta durante as discussões no Legislativo. Contudo, uma nova versão do texto, aprovada pela Comissão Especial Mista da Reforma Administrativa em novembro de 2021, confirmou as previsões mais pessimistas quanto à PEC 32, bem como a necessidade de um reset da reforma administrativa.

Desde então, a PEC 32 parecia tema superado no Congresso Nacional. Mas a manifestação do presidente da Câmara na semana passada reacendeu as discussões em torno da proposta. Fica a dúvida: vale a pena retomar a PEC da reforma administrativa?

No presente artigo (décimo da coluna Função Pública aqui no JOTA), o Núcleo de Inovação da Função Pública, da Sociedade Brasileira de Direito Público, sustentará por que, em sua visão, não vale a pena retomar a PEC da reforma administrativa. Para isso, o texto analisará como a proposta endereça três desafios atuais da gestão de pessoas no setor público: efetivação das avaliações de desempenho, combate a privilégios e modernização dos vínculos públicos de trabalho.

Efetivação das avaliações de desempenho no serviço público

Um dos temas que a PEC 32 se propõe a enfrentar é o das avaliações periódicas de desempenho no serviço público. Em 1998, a Emenda Constitucional 19 fixou a possibilidade de o servidor público estável perder o cargo “mediante procedimento de avaliação periódica de desempenho, na forma de lei complementar, assegurada ampla defesa” (art. 41, § 1º, III).

Contudo, mais de 20 anos depois da EC 19, a lei complementar que deveria disciplinar as avaliações periódicas de desempenho ainda não foi editada pelo Congresso Nacional.

A PEC 32 insere regras na Constituição sobre duas modalidades de avaliação do desempenho: dos órgãos e entidades (art. 3º, § 2º), e dos ocupantes de cargo, emprego ou função pública (art. 3º, § 3º).

A primeira envolve a definição de propósitos e metas institucionais com indicadores objetivos de resultados, adoção de procedimentos para aprimorar as atividades institucionais, utilização de instrumentos e abordagens específicas para determinadas áreas (como contratações públicas) e a aferição da satisfação dos cidadãos. A segunda envolve a fixação de metas de desempenho individual segundo as características do cargo, bem como a realização de avaliações periódicas do desempenho individual.

Mas é aqui que se iniciam os problemas da PEC, a começar pela própria ideia de inserir na Constituição regras tão específicas quanto à gestão do desempenho.

A gestão dos recursos humanos é ciência em contínua evolução. O que fazer se em dez anos houver um novo modelo para a gestão do desempenho? Mais uma reforma na Constituição? A rigidez constitucional parece dificultar a incorporação de futuros avanços na gestão do desempenho individual e institucional.

Outro ponto preocupante é o desligamento de servidores por desempenho insuficiente. É que a PEC 32 introduz, após o “procedimento de avaliação periódica”, mais um “processo administrativo” (art. 5º, § 1º), sem deixar claro qual o objetivo deste processo.

E, para “cargos exclusivos de Estado”, esse processo será conduzido por “ocupantes do mesmo cargo do servidor avaliado” (art. 5º, § 2º, II), o que pode suscitar dúvidas quanto à real efetividade desses procedimentos frente aos riscos de corporativismo já apontados na literatura.

Diminuição das desigualdades no funcionalismo público

O setor público apresenta grandes desigualdades salariais. Enquanto cerca de 70% dos servidores estatutários no Brasil têm remuneração de até R$ 5.000, há Tribunal de Justiça estadual que paga a seus magistrados, em média, salários de quase R$ 80 mil mensais.

Esse é o problema dos supersalários, termo que se refere a situações em que determinado agente público recebe valores que excedem o chamado teto remuneratório, equivalente à remuneração dos ministros do Supremo Tribunal Federal (atualmente fixada em R$ 41,6 mil mensais). Mas de onde vêm esses excessos?

A Constituição Federal estabelece um limite para os valores recebidos, a título de remuneração ou subsídio, por ocupantes de cargo, função ou emprego público, membros dos Poderes e detentores de mandato eletivo e demais agentes políticos (art. 37, XI, §§ 9º e 11). Contudo, exclui desse teto as “parcelas de caráter indenizatório previstas em lei”, para não prejudicar o agente por gastos ligados ao desempenho de suas funções, a exemplo de custos com alimentação durante o expediente e transporte para o trabalho.

O viés da norma, protetivo ao agente, acabou se tornando um meio de burlar o limite remuneratório e criar “penduricalhos” que vão muito além da intenção original de assegurar ao agente público condições de acesso ao trabalho.

A PEC 32 faz aceno à preocupação com os supersalários na máquina pública, inserindo na Constituição regras que, em tese, coibiriam abusos no recebimento de indenizações. Veda, por exemplo, o recebimento de “parcelas indenizatórias sem previsão de requisitos e critérios de cálculo definidos em lei” (art. 1º).

Mas, curiosamente, a PEC da reforma administrativa exclui de tais vedações o Judiciário e o Ministério Público – justamente as classes mais favorecidas em termos de supersalários. Na tentativa de evitar embates com a elite do funcionalismo público, a PEC 32, na realidade, traz uma espécie de constitucionalização da desigualdade no setor público.

Modernização dos vínculos públicos de trabalho

Outro grande desafio contemporâneo que a PEC 32 se propõe enfrentar é a modernização dos vínculos públicos de trabalho. Aqui, tema especialmente sensível é aquele do pessoal temporário.

A Constituição de 1988 prevê, para casos de “excepcional interesse público”, a contratação de agentes por tempo determinado (art. 37, IX). Mas a excepcionalidade não é real. Temporários são quase metade do pessoal em alguns estados e há necessidades reais dos serviços públicos, que não se pode ignorar.

O crescimento não veio com a indispensável modernização de regras e processos, o que trouxe problemas de governança. As leis subnacionais, que regem essas contratações nos diversos estados e municípios, nem sempre asseguram direitos mínimos aos temporários.

A PEC 32 até contém sinalizações positivas em relação ao pessoal temporário: torna explícita a possibilidade de a União editar “normas gerais sobre contratação por tempo determinado” (art. 1º), e estende a esses agentes alguns direitos trabalhistas previstos na Constituição (art. 4º, § 6º).

Contudo, a PEC da reforma administrativa busca inserir na Constituição uma série de regras específicas sobre as contratações por tempo determinado que, no geral, têm por efeito constitucionalizar o estado de coisas atual sobre o tema – o qual é propenso a improvisos e avesso à boa governança e ao planejamento da força de trabalho.

São regras sobre duração dos contratos, situações que permitem a contratação temporária e renovação dos vínculos que conservam o modelo atual do instituto, sem trazer incentivos (ou ferramentas) que permitam à administração pública aprimorar e regularizar o uso do instituto, que já se mostra essencial para prestação de diversos serviços públicos.

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A PEC 32 não endereça de modo adequado os principais desafios da atualidade no campo da gestão de pessoas no setor público. Mais do que isso, a proposta coloca em risco a própria modernização do RH do Estado, constitucionalizando ineficiência, desigualdade e improviso. Uma reforma administrativa verdadeiramente adequada às necessidades da administração pública brasileira deve envolver novas propostas, sem espaço para a retomada da controversa PEC 32.logo-jota