Opinião e Análise

Ricardo Alberto Kanayama

Personagem central na investigação do desvio de joias por integrantes do governo comandado pelo ex-presidente Jair Bolsonaro, o tenente-coronel do Exército Mauro Cid chamou a atenção nas últimas semanas não apenas pela volatilidade das declarações de seu advogado, mas também pelo conteúdo delas.
Primeiro, em entrevista à <a href="https://g1.globo.com/politica/blog/camila-bomfim/post/2023/08/16/alguem-determinou-ele-e-so-assessor-diz-novo-advogado-de-mauro-cid.ghtml">GloboNews</a>, a defesa do ex-ajudante de ordens de Bolsonaro afirmou que “assessor cumpre ordens do chefe”, que “o civil pode até se desviar, mas o militar tem por formação essa obediência hierárquica” e que “ordem ilegal, militar cumpre também; ordem injusta, cumpre”.
Depois, à <a href="https://www1.folha.uol.com.br/poder/2023/08/advogado-de-cid-causa-confusao-com-serie-de-avancos-e-recuos-sobre-joias-de-bolsonaro.shtml">Folha de S.Paulo</a>, afirmou que “assessor está lá para cumprir ordens, ajudar. Mas também não deixa de ter uma certa autonomia para fazer o meio, como, onde e quando”. À revista <a href="https://veja.abril.com.br/politica/ele-assume-que-foi-pegar-as-joias-disse-advogado-de-mauro-cid-a-veja">Veja</a>, teria afirmado que Mauro Cid confessaria ter recebido ordens do ex-presidente, mas, por fim, novamente à <a href="https://g1.globo.com/politica/blog/andreia-sadi/post/2023/08/18/cezar-bittencourt-advogado-mauro-cid-entrevista-globonews.ghtml">GloboNews</a>, disse que “é um equívoco que o Cid vai dedurar o Bolsonaro”.
Chama atenção o argumento da defesa quanto ao dever de obediência hierárquica que, no caso do agente militar, seria quase absoluto, mesmo diante de uma ordem ilegal. A denúncia de uma ilegalidade constituiria, na visão da defesa, “dedurar” ou “alcaguetar”, prática que seria abominada nos meios militares.
Embora possam existir discussões sobre o regime aplicável à função de ajudante de ordens do presidente da República ocupada pelo militar, o contexto suscita reflexões sobre o dever funcional de ciência geralmente previsto em estatutos do funcionalismo público.
Se o agente público tem conhecimento de alguma irregularidade, ele deve levá-la ao conhecimento da autoridade competente para apuração. Obediência hierárquica não é escusa para o agente público não denunciar ilicitudes. Se qualquer pessoa pode denunciar irregularidades aos órgãos de controle interno (ouvidorias, por exemplo) ou de controle externo (como Ministério Público ou tribunais de contas), o agente público tem o dever de fazê-lo.
Qualquer espécie de irregularidade pode ser reportada, mas casos envolvendo corrupção sistêmica e organizada, de difícil detecção, são os principais alvos. Aquele que denuncia não é partícipe no ilícito, sendo denominado de “denunciante” ou “reportante”, figura equivalente ao “whistleblower” no direito americano.
Nesse contexto, como pondera Anna Carolina Migueis Pereira, o agente público “têm acesso direto e mais próximo às informações relativas aos ilícitos que podem vir a ocorrer nos locais onde exercem suas funções. Sob esse aspecto, possuem uma posição privilegiada em relação aos órgãos de controle externo”.<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>
Assim, considerando a existência de um dever de dar ciência do agente público, é desejável que existam programas de reportantes que viabilizem a denúncia de irregularidades no setor público. E qual é a atual situação no Brasil quanto ao tema? Será que o agente público se sente seguro para cumprir seu dever de denunciar irregularidades?
Tomando-se por referência o Estatuto dos Servidores Públicos Federais (Lei 8.112/1990), o dever de ciência do servidor ganhou nova roupagem depois das alterações promovidas pela Lei de Acesso à Informação, a <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/lai">LAI</a> (Lei 12.527/2011).
Passou-se a permitir que o servidor leve a irregularidade ao conhecimento de outra autoridade que não o superior imediato (na hipótese de este estar envolvido). O objetivo é dar mais segurança àquele que quer denunciar, com a diminuição dos riscos de represálias ou retaliações. Ainda, impediu-se a responsabilização civil, penal ou administrativa do servidor que exercer o dever de ciência. Portanto, trata-se de uma medida protetiva ao servidor.
Mas será isso suficiente?
Considerando os princípios e os parâmetros sugeridos por organismos internacionais para a formatação de programas de reportantes, como a <a href="https://images.transparencycdn.org/images/2013_WhistleblowerPrinciples_EN.pdf">Transparência Internacional</a>, as disposições da Lei 8.112/1990 estão longe de incentivar a denúncia de irregularidades. Achados de <a href="https://documents1.worldbank.org/curated/en/129401636585714972/pdf/%25C3%2589tica-e-Corrup%25C3%25A7%25C3%25A3o-no-Servi%25C3%25A7o-P%25C3%25BAblico-Federal-A-Perspectiva-dos-Servidores.pdf">estudo</a> publicado em 2021 pelo Banco Mundial parecem corroborar essa conclusão: 51,1% dos agentes públicos ligados à administração direta federal não se sentiam seguros para denunciar ilicitudes. O número é ainda mais significativo ao se considerar que 80,5% dos entrevistados eram servidores concursados estáveis.
É preciso aprimorar a legislação.
Para isso, além da análise teórica, é recomendável conhecer os reais obstáculos e os reais incentivos para que um agente público exerça o seu dever de ciência. Pesquisas empíricas podem oferecer caminhos. Dois trabalhos recentes merecem destaque: o primeiro sob coordenação de Carlos Ari Sundfeld e Juliana Bonacorsi de Palma (<a href="https://bibliotecadigital.fgv.br/dspace/handle/10438/29432">Como viabilizar programas públicos de reportantes no Brasil?</a>), e o segundo de autoria de Fabiana Vieira Lima (<a href="https://bibliotecadigital.fgv.br/dspace/bitstream/handle/10438/29666/Programa%20de%20protecao%20e%20incentivos%20ao%20denunciante%20-%20Fabiana%20Vieira%20Lima.pdf?sequence=1&amp;isAllowed=y">Estudos para implementar um programa de proteção e incentivos ao denunciante no Brasil. Uma análise sob a ótica do servidor público</a>).
Conquanto não se possa abordar todos os dados levantados pelas pesquisas neste espaço, três pontos são considerados importantes para o aperfeiçoamento de um programa de reportantes segundo as duas pesquisas.
Primeiro, a necessidade de haver regras claras e específicas. O Brasil conta com legislações como o Disque-Denúncia (Lei 13.608/2018) e de Proteção à Testemunha (Lei 9.807/1999), mas não são normas próprias ao contexto do serviço público.
Poucos agentes se arriscarão a denunciar uma irregularidade sem saber se estão protegidos – e de que forma são protegidos – das eventuais externalidades negativas decorrentes da denúncia. Ademais, a ausência de regras claras passa a impressão tanto de que esse dever do agente público é desvalorizado pela própria Administração, quanto que ela não tem o interesse em apurar as denúncias recebidas.
Segundo, as duas pesquisas apontam que a proteção da identidade é fundamental para dar segurança ao denunciante, inclusive admitindo-se denúncias anônimas. A proteção da identidade daquele que leva ao conhecimento da autoridade competente uma irregularidade é a primeira maneira de evitar que o denunciado ou qualquer outra pessoa promova retaliações ao denunciante. Trata-se de um mecanismo de prevenção. Por isso, é importante a existência de um canal de denúncias oficial e preferencialmente autônomo.
Terceiro, as pesquisas mostram que a proteção ao agente público reportante deve ser a mais ampla possível. A retaliação não se resume à responsabilização nas esferas penal, cível e administrativa. Há outras retaliações possíveis, como alteração na lotação do agente público ou a criação de obstáculos no desenvolvimento da sua carreira. Contra essas e outras formas de retaliação o agente público deve estar protegido.
Pensar em um programa de reportantes para o Brasil é fundamental para melhorar a governança no serviço público. É difícil afirmar que, se ele existisse, o caso envolvendo o desvio de joias poderia ter um desenvolvimento diferente do que estamos presenciando, sobretudo em razão do tipo de relação que havia entre os envolvidos e da possível participação do subordinado na ilicitude. Neste caso, comprovada a participação de Mauro Cid, não seria ele um denunciante, mas um delator ou colaborador, cuja regulamentação legal já existe.
No entanto, se algum outro agente público não partícipe tivesse o conhecimento dessas irregularidades, e tivesse a intenção de levá-las ao conhecimento de outras autoridades para a devida apuração, será que ele se sentiria seguro a fazê-lo? Da maneira como a legislação atual trata do tema, é provável que a resposta fosse negativa.
<hr />
<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> PEREIRA, Anna Carolina Migueis. Entre a Perseguição e o Denuncismo: como a regulamentação do whistleblower pode reduzir a corrupção entre agentes públicos no Brasil. Revista de Direito Público da Economia - RDPE. Belo Horizonte (MG), v. 67, p. 9 - 42, jul./set. 2019, p. 15.

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JOTA

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