Opinião e Análise

Ariane Rodrigues

Me lembro de aprender na escola que o Brasil teria sido formado da união entre brancos, negros e indígenas, criando um povo miscigenado que convive em harmonia. Assim como eu, muitos brasileiros receberam essa mesma falsa lição da construção da nossa identidade nacional. Anos depois, já na minha vida profissional adulta, grande foi a minha surpresa quando uma colega estrangeira me perguntou como o Brasil tinha superado a discriminação étnica e racial. Tentando entender de onde poderia ter surgido uma pergunta tão descolada da nossa realidade, ela me contou que uma amiga brasileira teria repetido esse mesmo mito, que muitos de nós aprendemos na escola. 
O chamado mito da democracia racial permanece no imaginário coletivo, apagando anos de violência colonial contra negros e indígenas, que segue nos dias atuais; apagando os 355 casos de violência registrados contra pessoas indígenas apenas em 2021, fora aqueles que não são lembrados nas estatísticas; apagando mais de 500 anos de luta e resistência desses povos para permanecer existindo e ver reconhecido o direito fundamental às suas terras, onde eles já viviam muito antes da própria fundação do Estado brasileiro.
Uma das formas como essa violência se reproduz atualmente é no discurso de que os povos indígenas atrapalham o crescimento econômico. Argumenta-se que a demarcação de terras indígenas é um freio para o avanço do agronegócio, que seria o motor de desenvolvimento do país. Os números mostram que o agronegócio não precisa desmatar mais terras para se expandir – desmatamento, portanto, não é uma condição ao desenvolvimento, mas uma opção política, assim, imersa em relações de poder. 
Só na Amazônia e no Cerrado existem mais de 100 milhões de hectares, equivalentes a quatro vezes a área do estado de São Paulo, de terras já desmatadas que permitiriam ao menos dobrar a produção agrícola atual. Essas áreas estão atualmente ocupadas com pastagens, muitas delas abandonadas, pouco produtivas ou mal manejadas. A lotação bovina média no país é de menos de uma unidade animal por hectare – é pouco boi para muita terra. Práticas de manejo adequado que promovam um pequeno aumento de 17% a 18% na produtividade das pastagens liberariam terras suficientes para atender a demanda por produtos agrícolas até pelo menos 2040, com aumento de produção sem perda de vegetação nativa. 
Nesse quadro, a demarcação de terras indígenas, assim como a criação de outras áreas protegidas, é uma política pública que o governo dispõe para ajudar a garantir que a expansão agrícola seja direcionada para essas áreas já abertas, sem causar mais desmatamento, seja ele legal ou ilegal. Historicamente, a gestão territorial tradicional que os povos indígenas realizam em suas terras é eficaz para preservar a floresta, contendo o desmatamento e o avanço do fogo. 
Entre 2013 e 2018, o desmatamento nas terras indígenas representou apenas 1,86% de todo o desmatamento na Amazônia brasileira. Com o enfraquecimento das políticas ambientais no período seguinte, entre 2019 e 2021, houve um aumento de 195% do desmatamento em terras indígenas e emissão de 57 milhões de toneladas de carbono, associados ao aumento da pressão de ocupação dessas áreas por invasão ilegal e garimpos. Os dados mostram os riscos ambientais associados à redução da proteção de terras indígenas.  
Esses riscos estão estreitamente ligados à crise climática. As terras indígenas na Amazônia Legal estocam cerca de 11 bilhões de toneladas de carbono. Além de estocar carbono, elas evaporam água que forma os rios voadores, essenciais para garantir o regime de chuvas do qual a agricultura depende. Sem as chuvas e tantos outros serviços ecossistêmicos que o meio ambiente fornece, há perda das safras e dos investimentos na agricultura, podendo inclusive inviabilizar a produção. E um agronegócio que pretende crescer com desmatamento e desrespeito a direitos indígenas vai na contramão de todos os esforços que têm sido construídos em nível nacional e global para reduzir as emissões de gases do efeito estufa e promover os objetivos de desenvolvimento sustentável. 
O reconhecimento dos direitos indígenas é um motor de desenvolvimento para o país, e um desenvolvimento em bases sustentáveis. É a comprovação não apenas de que o Brasil é uma democracia inclusiva e uma economia inteligente, que sabe usar bem seus recursos para o benefício de seu povo, mas também ética e um modelo a seguir, em escala global. Políticas que seguem o caminho da conservação têm atraído cada vez mais investimentos para o país. Desde janeiro de 2023, foram anunciados aportes de mais de R$ 4 bilhões para o Fundo Amazônia e outras ações socioambientais no Brasil. 
O uso desses recursos e a atração de novos investimentos dependem de o país conseguir conter o desmatamento com ações concretas, não apenas atos simbólicos, incluindo a demarcação de terras indígenas. Políticas de conservação se tornam ainda mais importantes no momento atual, em que os países estão falhando em reduzir suas emissões para manter o aquecimento global abaixo de 1,5°C em relação ao período pré-industrial e as esperanças se voltam para o potencial de captura de carbono das florestas.  
O <a href="http://chrome-extension://efaidnbmnnnibpcajpcglclefindmkaj/https://images.jota.info/wp-content/uploads/2021/09/re-1017365-i.pdf?x36613">Recurso Extraordinário 1.017.365</a> é precisamente uma disputa de terras entre indígenas expulsos de seus territórios e o Instituto do Meio Ambiente de Santa Catarina. Além dos direitos dos povos Xokleng, o que está em discussão é a tese do <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/marco-temporal">marco temporal</a>. Surgida no contexto de uma vitória para os povos Ingarikó, Macuxi, Patamona, Taurepang e Wapichana que vivem na Terra Indígena Raposa Serra do Sol, essa tese traz agora uma ameaça direta aos direitos dos povos originários.
A tese do marco temporal também foi incluída no <a href="https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=345311">PL 490/2007</a>, aprovado pela Câmara dos Deputados na semana passada com 76% dos votos a favor da Frente Parlamentar da Agropecuária. Esses desdobramentos mostram que a discussão sobre marco temporal não se desvincula do conflito por terras no meio rural brasileiro. 
O marco temporal poderá aumentar a invasão às terras indígenas já demarcadas, que podem vir a ser questionadas. Cria ainda dificuldades para comprovar o uso tradicional e alimenta o ciclo histórico de injustiça, por não reconhecer territórios a povos que já haviam sido expulsos na data que a Constituição Federal de 1988 entrou em vigor. Além de ser uma ameaça socioambiental, é sobretudo um retrocesso de direitos fundamentais. Nessa questão, que repercute em ao menos 1,6 milhão de indígenas de mais de 300 povos, nas políticas globais de combate às mudanças climáticas e na construção de uma democracia que enxerga e respeita as diferenças étnicas, o Supremo Tribunal Federal tem a última palavra.

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JOTA

Tese alimenta clima de injustiças no país e representa um retrocesso de direitos fundamentais

Mudar o marco temporal é uma ameaça direta aos povos originários

Tese do marco temporal alimenta clima de injustiças no país e representa um retrocesso de direitos fundamentais