Opinião e Análise

André de Carvalho Ramos

Em 30 de janeiro de 2023, a Corte Interamericana de Direitos Humanos (<a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/corte-idh">Corte IDH</a>) analisou os direitos humanos (e seus limites) envolvidos no processo de destituição de magistrado de tribunal superior por deliberação do Poder Legislativo no caso Aguinaga Aillón vs. Equador (sentença de 30-01-2023)<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>.
Tal situação interessa ao Brasil, uma vez que (i) há previsão constitucional expressa de julgamento no Poder Legislativo (Senado Federal) de membros do Supremo Tribunal Federal e do Procurador-Geral da República por “crime de responsabilidade” (art. 52, II da CF/88) e (ii) o Brasil reconheceu a jurisdição contenciosa obrigatória da Corte IDH, o que exige a observância de toda sua jurisprudência (e não somente em relação aos casos contra o Brasil), evitando-se futura responsabilização internacional do Estado brasileiro.
Tratou-se destituição do senhor Carlos Aninaga Aillón de seu cargo de membro do Tribunal Supremo Eleitoral do Equador por meio da Resolução 25-160 do Congresso Nacional equatoriano em 2004, somada ao entendimento da Corte Constitucional que impediu que juízes de primeira instância conhecessem ações contra tal resolução do Congresso.
Destaco a longa fase de processamento do caso na Comissão Interamericana de Direitos Humanos: a petição foi recebida em maio de 2005 e somente encaminhada à Corte IDH em maio de 2021, ou seja, houve o decurso de 16 anos para que a Comissão fosse convencida da ocorrência da prática, pelo Equador, de graves violações de direitos protegidos na Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH).
O caso se insere em um contexto de instabilidade política daquele país: de 1998 a 2007, o Equador possuiu sete presidentes e nenhum terminou o mandato constitucional de quatro anos. O Estado manifestou, durante audiência pública perante a Corte, que reconhecia parcialmente sua responsabilidade internacional no presente caso "pela violação dos artigos 8º e 25 da Convenção Americana em detrimento do senhor Carlos Aguinaga". Esse reconhecimento foi feito sobre os seguintes fatos: a) sua destituição como membro titular do Tribunal Supremo Eleitoral por Resolução do Congresso Nacional e b) a falta de um mecanismo judicial de contestação à Resolução de acordo com os padrões do artigo 25 da Convenção Americana.
Prosseguindo com a avaliação do caso (mesmo após o Equador admitir parcialmente sua responsabilidade internacional), a Corte IDH observou que, apesar do Tribunal Supremo Eleitoral exercer atividades administrativas, organizacionais e de condução de processos eleitorais, ele também possuía a função de conhecer, processar e decidir questões vinculadas à justiça eleitoral. Dessa forma, o Tribunal Supremo Eleitoral desempenhava primordialmente funções jurisdicionais na esfera eleitoral. Assim, seus membros, como o senhor Aguinaga Aillón, gozavam da mesma independência judicial atribuída aos juízes em geral, dada a natureza predominantemente jurisdicional de suas atividades.
Em um ponto que importa ao Brasil, a Corte IDH afirmou que um dos principais objetivos da separação dos poderes é, precisamente, garantir a independência das autoridades judiciais. Portanto, existe uma relação direta entre a dimensão institucional da independência judicial e o direito dos juízes de ter acesso e permanecer em seus cargos em condições gerais de igualdade. Com base nisso, o Tribunal indicou que da independência judicial derivam as seguintes garantias relacionadas à função das autoridades judiciais: (i) garantia de um processo adequado de nomeação; (ii) garantia de estabilidade e inamovibilidade no cargo e (iii) garantia de proteção contra pressões externas, ou seja, que não haja risco de retaliação por deliberações tomadas.
A inamovibilidade no cargo dessas autoridades judiciais (e a Corte inclui também os membros do Ministério Público) não significa impossibilidade de remoção, mas a destituição deve ocorrer exclusivamente por motivos legítimos (ou seja, não pode ser por insatisfação por determinada decisão), por meio de um processo que cumpra com as garantias judiciais ou porque o prazo ou período de mandato foi cumprido. Os motivos legítimos devem se subsumir a faltas disciplinares ou a incompetência, de acordo com as normas de conduta judicial estabelecidas e através de procedimentos justos, objetivos e imparciais, conforme a Constituição ou a lei. Para a Corte IDH, a destituição sem fundamento (ou com fundamento insincero) de autoridades judiciais promove dúvidas objetivas sobre a possibilidade real de exercerem suas funções de modo independente, sem medo de retaliações.
A Corte ressaltou a importância da independência judicial, sublinhando que é essencial estar livre de pressões externas. Assim, o Estado não deve interferir no Poder Judiciário, nem permitir interferências de terceiros. Conforme os Princípios Básicos das Nações Unidas sobre a Independência do Judiciário<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>, os magistrados devem decidir os casos sem restrições, isentos de qualquer influência ou pressão externa, seja ela de onde vier. Esses mesmos princípios também proíbem interferências indevidas no processo judicial.
Em essência, a democracia e o Estado de Direito dependem de uma judicatura verdadeiramente independente, conforme o artigo 3 da Carta Democrática Interamericana. Para resolver os conflitos da sociedade de acordo com a lei, juízas e juízes precisam de garantias robustas. Sem respeitar sua independência e autoridade, reina a arbitrariedade. Tais garantias estão vinculadas ao papel do Poder Judiciário em um Estado democrático de Direito, porque os magistrados, no limite, são garantidores dos direitos humanos, o que exige proteger sua independência, especialmente em relação aos outros poderes do Estado ou mesmo diante dos agentes econômicos.
A Corte IDH considerou que os membros do Tribunal Supremo Eleitoral do Equador deveriam contar com as mesmas garantias de independência judicial que os juízes em geral, em razão da natureza materialmente jurisdicional das funções que desempenhavam, e que o Congresso agiu fora de suas competências e de forma arbitrária, afetando a separação dos poderes, violando os direitos de defesa e de conhecer prévia e detalhadamente uma acusação, além de violar as condições da vítima de permanecer no cargo em condições de igualdade e de estabilidade no emprego.
Em outro ponto relevante para o Brasil, a Corte enfatizou que a garantia de independência judicial dos tribunais eleitorais é fundamental em um sistema democrático. Isso porque essas instituições são pilares do sistema eleitoral e representam o mecanismo de revisão judicial que assegura a condução de eleições justas, livres e confiáveis.
A Corte também decidiu que o Estado violou a Convenção Americana ao impedir que o senhor Aguinaga Aillón interpusesse qualquer ação contra sua destituição do cargo, o que valoriza também o amplo acesso à justiça previsto na Constituição brasileira. Caso tal situação ocorresse no Brasil, existiria a possibilidade – acertadamente – de se buscar amparo no Poder Judiciário.
No que tange às reparações, a sentença da Corte – em 2023 – não ordenou a restituição da vítima ao cargo perdido. De fato, a partir de 2008, houve reorganização do sistema de supervisão eleitoral no Equador, o que tornou impossível a restituição do senhor Aguinaga Aillón à sua anterior posição. Foi determinado o pagamento da quantia de US$ 60 mil a título de indenização para a vítima.
O caso é extremamente importante para o Brasil, uma vez que houve, em passado recente, o protocolo de pedidos de impeachment de ministros de Tribunais Superiores, e no caso do ministro Alexandre de Moraes (STF e TSE), o pedido foi feito pelo então presidente da República, Jair Bolsonaro.
O juízo político contra autoridades judiciais não pode ser arbitrário e se submete às garantias processuais da CADH, como já pacificado na Corte IDH (por exemplo, no caso Ríos Avalos e outro vs. Paraguai, sentença de 19-8-2021<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>).
Assim, quando o impeachment é instaurado contra autoridades judiciais, o controle parlamentar deve se basear em (i) razões jurídicas e ser exercido de acordo com (ii) garantias processuais, não podendo o julgador parlamentar atuar por conveniência, oportunidade ou por razões políticas. Deve existir crivo jurídico sobre (i) a conduta imputada; (ii) sobre o julgador político (é imparcial?) e (iii) sobre o procedimento (observou as garantias processuais? sofreu o crivo judicial, caso acionado?).
O processo de impeachment não pode ser provocado pelo conteúdo das decisões judiciais exaradas pelas vítimas, uma vez que tal situação amesquinha a independência funcional dos magistrados e, com isso, viola a garantia do devido processo legal (art.8.1) prevista na CADH.
Essa restrição ao controle político do Parlamento sobre o Poder Judiciário reforça a separação das funções do poder e preserva o Estado de Direito. Por fim, a jurisprudência da Corte IDH densifica os limites da deliberação do Poder Legislativo nos casos de impedimento por “crime de responsabilidade” dos membros do Supremo Tribunal Federal e do Procurador-Geral da República, mostrando a importância do seu estudo no Brasil.
<hr />
<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> Comentei esse caso em CARVALHO RAMOS, André de. Curso de direitos humanos. 10ª ed., São Paulo: Saraivajur, 2023, p. 507.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> Ver comentários sobre os “Princípios” em CARVALHO RAMOS, André de. Curso de direitos humanos. 10ª ed., São Paulo: Saraivajur, 2023, p. 297.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> Ver comentários sobre os caso Ríos Avalos em CARVALHO RAMOS, André de. Curso de direitos humanos. 10ª ed., São Paulo: Saraivajur, 2023, pp.497-498.

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JOTA

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