Opinião e Análise

Flávia Piovesan

Em 11 de abril de 2023, a <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/corte-idh">Corte Interamericana de Direitos Humanos</a>, em emblemática sentença, condenou o Estado do Peru, em virtude de violação dos direitos à igualdade e proibição de discriminação, à vida privada, às garantias e proteção judicial, como consequência de atos de discriminação por orientação sexual sofridos por Chrissthian Manuel Olivera Fuentes. 
Conforme relatado pela vítima, em audiência da Corte Interamericana, no período de sessões realizado no Brasil, na sede do Superior Tribunal de Justiça (STJ), em 24 de agosto de 2022, estava a tomar café com seu então namorado em uma cafeteria, no interior de um supermercado, em Lima, quando foram subitamente abordados por seguranças e convidados a se retirar. Segundo a vítima, estavam apenas lendo poemas um para o outro, quando foram hostilizados por seguranças, sob o argumento de que o comportamento de ambos na demonstração de afetos estaria a incomodar clientes. Em sua defesa, o representante do supermercado sustentou que o casal estava a cometer “atos de homossexualidade”, ferindo a “moral e os bons costumes”. No âmbito interno, foram esgotados os recursos domésticos, com o indeferimento do pedido da vítima, sob o argumento de insuficiência de provas. 
Em uma sentença histórica, a Corte Interamericana reconheceu a responsabilidade internacional do Estado do Peru, por violação ao direito à liberdade pessoal, à vida privada, à igualdade perante a lei, bem como às garantias judiciais e à proteção judicial. Sustentou que o dever do Estado de respeitar direitos humanos sem discriminação alguma, enunciado no artigo 1º da Convenção Americana, demanda interpretação extensiva, de forma a incluir a orientação sexual como critério protegido, reiterando a interpretação desenvolvida no leading case Atala Riffo vs Chile, em 2012.
Enfatizou a Corte que “as pessoas LGBTIQ+ têm sido historicamente vítimas de discriminação estrutural, estigmatização, bem como diversas formas de violência e violação aos seus direitos fundamentais. Essa violência contra as pessoas LGBTIQ+ é baseada no preconceito (...) e pode ser motivada pelo desejo de punir aqueles que desafiam as normas de gênero”. Ressaltou que o alcance da igualdade material, para além da igualdade formal, com o combate à toda e qualquer discriminação, há de envolver toda a sociedade, com especial destaque ao setor empresarial. Isto implica na necessidade das empresas assumirem a responsabilidade de respeitar os direitos das pessoas LGBTIQ+ no contexto laboral e em suas relações comerciais, incluindo a oferta de produtos e serviços. Quanto ao elemento probatório, a Corte entendeu que as instâncias internas exigiram da vítima um “padrão de prova difícil e desproporcional”, tornando nulo o direito da vítima de acesso à justiça, sustentando a necessidade de realizar a inversão do ônus probatório, cabendo, deste modo, à empresa apresentar, se for o caso, justificativa objetiva e razoável para eventual diferença de tratamento. 
No âmbito das medidas de reparação, ordenou a Corte que o Estado do Peru desenvolva políticas adequadas, bem como atividades regulatórias, de monitoramento e controle para que as empresas adotem ações destinadas a eliminar qualquer tipo de prática e atitude discriminatória em face da população LGBTIQ+. No que se refere às empresas, a decisão insta as empresas a formular políticas visando respeitar os direitos humanos, incluindo expressamente os direitos das pessoas LGBTIQ+, bem como exercer a devida diligência para identificar, prevenir e mitigar qualquer impacto negativo ao gozo dos direitos humanos das pessoas LGBTIQ+, que esteja diretamente relacionado às suas operações, produtos, serviços e relações comerciais, implementando, ainda, mecanismos de reparação para as vítimas.
Dentre outras medidas de reparação, determinou a Corte que o Estado do Peru forneça tratamento psicológico e/ou psiquiátrico à vítima; efetue o pagamento de uma indenização à vítima; implemente campanhas de conscientização orientadas ao respeito e não discriminação em face das pessoas LGBTIQ+; e formule plano sobre diversidade sexual nos cursos de formação de carreiras administrativas e judiciais. 
Três são as dimensões essenciais do sistema interamericano: a centralidade das vítimas (o “victim centric approach”); os estândares interamericanos a formar o “corpus juris interamericano”; e o instituto da reparação integral a envolver medidas de restituição; reabilitação; compensação; satisfação; medidas de acesso à justiça; e garantias de não repetição (visando ao dever de prevenir violações de direitos humanos por parte do Estado). É no âmbito das garantias de não repetição e com fundamento no dever do Estado de prevenir violações de direitos humanos que o sistema interamericano tem sido capaz de fomentar transformações estruturais, demandando do Estado a adoção de políticas públicas e marcos normativos. Sustenta-se que violações estruturais têm causas estruturais, exercendo o sistema interamericano um impacto transformador ao contribuir para o desmantelamento das causas estruturais, evitando sua perpetuação.<span data-ccp-props="{&quot;134245417&quot;:false,&quot;201341983&quot;:0,&quot;335551550&quot;:6,&quot;335551620&quot;:6,&quot;335559731&quot;:454,&quot;335559738&quot;:17,&quot;335559739&quot;:17,&quot;335559740&quot;:480}"> 
Nesse sentido, a emblemática decisão da Corte no caso Oliveira Fuentes fortalece, amplia e expande o “corpus juris interamericano” protetivo dos direitos das pessoas LGBTIQ+, no combate à discriminação e na proteção à igualdade. Note-se que, no leading case Atala Riffo y niñas contra o Chile, decidido pela Corte Interamericana em 24 de fevereiro de 2012, ineditamente foi analisada a responsabilidade internacional do Estado em face do tratamento discriminatório e da interferência indevida na vida privada e familiar da vítima Karen Atala devido à sua orientação sexual. No entender unânime da Corte Interamericana, o Chile violou os arts. 1º, parágrafo 1º, e 14 da Convenção Americana, por afrontar o princípio da igualdade e da proibição da discriminação.
À luz de uma interpretação dinâmica e evolutiva compreendendo a Convenção como um “living instrument”, ressaltou a Corte que a cláusula do artigo 1º, parágrafo 1º, é caracterizada por ser uma cláusula aberta de forma a incluir a categoria da orientação sexual, impondo aos Estados a obrigação geral de assegurar o exercício de direitos, sem qualquer discriminação. Argumentou ainda que “a igualdade é inseparável da dignidade essencial de cada pessoa, frente a qual é incompatível toda situação que, por considerar superior um determinado grupo, implique tratá-lo com privilégios; ou que, a contrário senso, por considerá-lo inferior o trate com hostilidade, ou, de qualquer forma, o discrimine no gozo de direitos reconhecidos”. Enfatizou que o princípio da igualdade e da proibição de discriminação ingressou no domínio do “jus cogens” na atual etapa evolutiva do Direito Internacional, amparando a ordem pública nacional e internacional que permeia todo ordenamento jurídico. Concluiu que “nenhuma norma, decisão ou prática de direito interno, seja por parte de autoridade estatal, seja por particular, podem diminuir ou restringir direitos de pessoas com base em orientação sexual”. <span data-ccp-props="{&quot;134245417&quot;:false,&quot;201341983&quot;:0,&quot;335551550&quot;:6,&quot;335551620&quot;:6,&quot;335559731&quot;:0,&quot;335559738&quot;:17,&quot;335559739&quot;:17,&quot;335559740&quot;:480}"> 
Por outro lado, a emblemática decisão da Corte no caso Oliveira Fuentes inova ao ineditamente incorporar estândares relativamente à responsabilidade empresarial em face dos direitos das pessoas LGBTIQ+. Nessa direção, confere ênfase no dever de devida diligência empresarial para identificar, prevenir e mitigar qualquer impacto negativo ao gozo dos direitos humanos das pessoas LGBTIQ+, implementando, ainda, mecanismos de reparação para as vítimas. Outra inovação relevante atém-se à inversão do ônus probatório, em casos de discriminação contra pessoas LGBTIQ+, considerando sua especial vulnerabilidade.<span data-ccp-props="{&quot;134245417&quot;:false,&quot;201341983&quot;:0,&quot;335551550&quot;:6,&quot;335551620&quot;:6,&quot;335559731&quot;:708,&quot;335559738&quot;:28,&quot;335559739&quot;:28,&quot;335559740&quot;:480}"> 
Ao adotar o victim centric approach e o instituto da reparação integral, o mandato transformador do sistema interamericano ambiciona debelar e desmantelar os padrões estruturantes de discriminação, estigmatização e violência em face das pessoas LGBTIQ+, assegurando o seu mais essencial direito a desenvolver suas potencialidades de forma livre, autônoma e plena, conferindo sentido e significado à sua própria existência.

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JOTA

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