Opinião e Análise

Melina Girardi Fachin

O <a href="https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_475_esp.pdf">caso Angulo Losada vs. Bolívia</a>, julgado no início de 2023 pela <a href="https://www.corteidh.or.cr/index.cfm?lang=pt">Corte Interamericana de Direitos Humanos</a>, é uma narrativa angustiante de agressão sexual, capturando a intrincada rede de desafios que podem embaraçar a busca das vítimas deste tipo de violência por justiça.
A saga da vítima Brisa Angulo Losada e de sua família se estendeu por duas décadas, abrangendo múltiplas violências de gênero, a jornada árdua por justiça, as complexidades da responsabilização e a interação entre as esferas legais nacionais e internacionais. Este caso destaca a urgência de abordar casos de violência sexual de maneira adequada, expedita e abrangente, salvaguardando os direitos das vítimas e sustentando os princípios da <a href="https://doi.org/10.54829/revistacnj.v6iesp.344">justiça com perspectiva de gênero</a>.
Os fatos do caso remontam a 2001, quando Brisa Liliana de Angulo Losada se aproximava de seu 16º aniversário e seu primo – de então 26 anos – passou a residir temporariamente com sua família. A partir de então, uma sequência de agressões sexuais se desenrolou, ocultada através de intimidação, coerção e tormento psicológico, estendendo-se por cerca de oito meses. Os pais da vítima apenas vieram a saber do sofrimento da filha por acaso, ao encontrarem o diário dela, revelado por um irmão. Seu diário transformou-se no revelador e doloroso testemunho da terrível realidade que ela havia enfrentado.
Em 2002, ainda que superando todas <a href="https://corteidh.or.cr/noticias.cfm?n=75&amp;lang=pt">as dificuldades que se fazem presentes para a denúncia de crimes sexuais e todos os estereótipos circundantes</a>, a vítima finalmente formalizou denúncia perante as autoridades bolivianas, dando início a um percurso judicial cujas reviravoltas iriam testar sua resiliência na busca por justiça e responsabilização.
Uma primeira sentença de condenação por estupro foi proferida em 2003, contudo, a decisão foi anulada dois anos depois. Os processos judiciais subsequentes culminaram, em 2005, na absolvição do acusado devido à ausência de provas suficientes. A absolvição foi permeada por um julgamento sem nenhuma perspectiva de gênero e que revitimizou Brisa.
Neste aspecto, a sentença da <a href="https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_475_esp.pdf">Corte Interamericana anotou</a><a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a> que a absolvição destaca as dificuldades frequentemente encontradas em casos de agressão sexual, onde a falta de evidências tangíveis ou a incapacidade de apresentar provas convincentes (para além da própria palavra da vítima que deveria ser considerada contundente) pode levar a resultados que deixam as vítimas desprotegidas e desfavorecidas perante a lei. Este tipo de desfecho também enfatiza a importância de abordagens sensíveis e eficazes para coleta e apresentação de evidências em casos de agressão sexual, a fim de garantir que os agressores não escapem da responsabilidade devido à limitações legais ou processuais.
Todavia, a busca da vítima e seus familiares pela realização da justiça e reconhecimento da responsabilização do agressor não se esgotou aí. Por intervenção da Corte Suprema de Cochabamba, em 2007, invalidou-se a absolvição e ordenou-se um novo julgamento por irregularidades processuais anteriores já que evidências que não foram consideradas de maneira adequada no julgamento original. A Corte local apontou falhas no processo que comprometeram a imparcialidade ou a integridade do julgamento, levando à decisão de anular a sentença anterior e ordenar um novo exame.
Porém, a complexidade do caso atingiu o ápice em 2008, quando o acusado deixou a Bolívia e retornou à Colômbia, sua terra natal, dificultando sua responsabilização haja vista os complexos processos de cooperação transnacional a fim de obter a extradição e responsabilização do agressor. Neste momento, uma barreira quase que intransponível ergueu-se entre a vítima e o acesso à justiça.
Muitos anos depois da fuga que o Estado da Bolívia deu início aos procedimentos de extradição do acusado, a fim de enfrentar as acusações criminais pelas quais estava sendo procurado. Após sua captura e durante o processo de extradição, a Suprema Corte da Colômbia emitiu decisão para sua libertação baseada na aplicação do estatuto de limitações, considerando o lapso temporal transcorrido. Em 7 de outubro de 2022, a Sala de Casa Penal da Corte Suprema de Justiça da Colômbia cancelou a ordem de captura com multas de extradição do agressor sob o argumento da prescrição da ação penal à luz da normatividade colombiana. A libertação do acusado devido às limitações temporais e incidência da prescrição efetivamente encerrou a possibilidade de prosseguir com a responsabilização do agressor no caso, mesmo após mais de duas décadas desde o início dos eventos.
Estas circunstâncias intrincadas pintam um retrato angustiante da trajetória da vítima, e de todas as demais vítimas de violência sexual na nossa região, reforçando a necessidade premente de reformas no sistema legal para garantir que vítimas de agressão sexual tenham efetivo acesso à justiça sem demora e de modo apropriado. O prolongamento das ações legais, combinado com as complexidades transnacionais da extradição e a barreira prescricional, retratam um cenário de violação múltipla de direitos da vítima e de seus familiares.
A história de Angulo Losada – que é dela e infelizmente de muitas <a href="https://www.oas.org/pt/cidh/jsForm/?File=/pt/cidh/prensa/notas/2021/315.asp">mulheres que sofrem violência sexual na nossa região</a><a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a> – destaca a urgência de implementar medidas que garantam a pronta proteção dos direitos das vítimas, assegurando que a busca por justiça não seja um fardo insuportável, mas sim uma jornada rumo à verdade e à reparação, com a necessária perspectiva de gênero.
É para Brisa e para todas essas pessoas que a justiça chegou, em janeiro de 2023, com condenação do Estado Boliviano na Corte IDH. Ao considerar o Estado boliviano responsável, a Corte Interamericana determinou uma série de medidas reparatórias que visam abordar deficiências legislativas e institucionais que contribuíram para a violação de direitos e que continuam a colocar em risco as vítimas presentes e futuras de crimes sexuais na Bolívia.
Primeiro, a Corte determinou que o Estado deve manter aberto o processo penal contra o agressor e iniciar uma investigação se houver mudanças nas circunstâncias que permitam isso. Além disso, afirmou que o Estado é obrigado a adotar todas as medidas necessárias para determinar, em um prazo razoável, as responsabilidades dos funcionários que contribuíram para atos de revitimização e possíveis irregularidades contra Brisa de Angulo Losada.
O Estado também foi considerado obrigado pela Corte a reconhecer publicamente sua responsabilidade internacional por meio de um ato público. Ainda, para garantir a transparência e a conscientização, a sentença internacional dispôs que, como de praxe, o Estado deve publicar um resumo da sentença no Diário Oficial e em um meio de comunicação nacional de grande circulação. Além disso, a sentença completa deve ser disponibilizada em site oficial.
Para fortalecer as leis, a Corte apontou que o ordenamento jurídico interno da Bolívia deve ser ajustado para considerar a falta de consentimento como central e constitutiva do crime de violação, enquanto o crime de estupro deve ser completamente eliminado, anota a Corte. Neste ponto, cabe destaque ao <a href="https://www.migalhas.com.br/arquivos/2023/1/BCF08DC8BFAAA5_VOTO_mudrovitsch.pdf">voto concorrente do juiz Rodrigo Mudrovitsch</a> que abordou a questão da classificação de crimes sexuais na Bolívia.
O juiz Mudrovitsch explicou que o processo da Sra. Losada contra o agressor levantou controvérsias sobre se o réu deveria ser acusado de "violação" ou "estupro". O termo "violação" envolvia atos de conjunção carnal com violência física ou intimidação, acarretando pena de prisão de 5 a 15 anos. Enquanto isso, o termo "estupro" se referia a conjunção carnal com menores de 18 anos por meio de sedução ou engano, com pena de prisão de 2 a 6 anos. O juiz, em seu voto concorrente, alegou que o sistema adotado pela Bolívia era antiquado e não abrangia todas as formas de violação; argumentou que a exigência de resistência ignorava reações psicológicas das vítimas, perpetuando a ideia equivocada de que é responsabilidade delas se protegerem.
Por isso, o Mudrovitsch defendeu que a exigência de consentimento genuíno e a consideração das circunstâncias coercitivas eram padrões adequados sob o Direito Internacional dos Direitos Humanos. Recomendou-se, assim, que a Bolívia eliminasse a exigência de violência e intimidação do artigo 308 do Código Penal, adotando um critério centrado na ausência de consentimento como forma de se adequar aos standards internacionais e à jurisprudência da própria Corte interamericana. <a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>
A Corte também exigiu que o Estado faça ajustes em relação à violação incestuosa, dando-lhe um nome específico no Código Penal boliviano. Neste sentido, o voto concorrente do Juiz brasileiro incursiona pela relação tensa (“aparente paradoxo”<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>) existente entre o direito penal e a defesa dos direitos humanos, mas destaca a importância deste destaque no nomen iuris próprio: “a percepção pública da ilicitude e da reprovabilidade de determinadas condutas são impactadas não apenas pela tipificação do ato em si, mas também pela maneira com que a legislação penal classifica e rotula determinados crimes”<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a>.
Para melhorar a proteção das vítimas, a Corte ainda determinou que o Estado deve implementar protocolos de investigação e atendimento para menores vítimas de violência sexual<a href="#_ftn6" name="_ftnref6">[6]</a>, bem como fornecer treinamento contínuo para funcionários públicos envolvidos na administração da justiça e na área médica. Uma campanha de conscientização é necessária para enfrentar os padrões socioculturais que normalizam o incesto, e informações relevantes sobre prevenção e denúncia de violência sexual devem ser incorporadas nos materiais escolares obrigatórios, destacou a sentença. Por fim, um sistema centralizado de coleta de dados para casos de violência sexual contra menores deve ser formulado e implementado pelo Estado.
Em suma, as medidas reparatórias determinadas pela Corte Interamericana no caso Angulo Losada têm como objetivo corrigir falhas legais e institucionais, garantir justiça para esta e todas as demais vítimas e prevenir futuras violações dos direitos das vítimas de crimes sexuais na Bolívia e na região latino-americana como um todo. O périplo de Angulo Losada funciona como um lembrete veemente dos obstáculos que as vítimas de violência sexual podem enfrentar enquanto embarcam em sua jornada em busca de justiça. Os caminhos legais prolongados que culminam na libertação do acusado devido ao estatuto de limitações convoca uma pergunta crucial sobre a eficácia dos sistemas legais em lidar eficazmente com tais casos. Para superar esses obstáculos, exige-se a implementação de não apenas estruturas legais robustas, mas também o compromisso resoluto com ação rápida e abrangente para proteger os direitos das vítimas e responsabilizar agressores, realizando a justiça com perspectiva e sensibilidade de gênero.
O caso destaca a indispensabilidade das reformas legais e institucionais para abordar essas graves violações de direitos e <a href="https://www.migalhas.com.br/arquivos/2023/1/BCF08DC8BFAAA5_VOTO_mudrovitsch.pdf">"desembaraçar as restrições que foram impostas à Sra. Losada em seu acesso à justiça, as quais são enfrentadas por um sem-número de pessoas"</a><a href="#_ftn7" name="_ftnref7">[7]</a>.
<hr />
<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> Pár 63 do caso. Disponível em: <a href="https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_475_esp.pdf">https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_475_esp.pdf</a>.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> Segundo dados da Organização Mundial da Saúde (OMS), uma de cada três de mulheres no mundo sofre violência sexual e/ou física. Na América Latina e Caribe registra-se que 1.1 milhões de adolescentes de 15 a 19 anos sofreram violência sexual ou algum ato sexual forçado desde a infância e que meninas e adolescentes de entre 10 e 14 anos representam 80% das vítimas de agressões sexuais. Disponível em: <a href="https://www.oas.org/pt/cidh/jsForm/?File=/pt/cidh/prensa/notas/2021/315.asp">https://www.oas.org/pt/cidh/jsForm/?File=/pt/cidh/prensa/notas/2021/315.asp</a>
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> “...exigir consentimento genuíno e voluntário para o ato sexual e considerar as circunstâncias coercitivas que viciam qualquer consentimento é o standard mais adequado perante o Direito Internacional dos Direitos Humanos para proteger as vítimas de violação, conclui-se que a Bolívia deve eliminar os requisitos de violência e intimidação do artigo 308 do seu Código Penal como garantia de não repetição, incorporando, verdadeiramente, um parâmetro centrado na ausência de consentimento...”In: Pár 80 do voto concorrente disponível em: <a href="https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_475_esp.pdf">https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_475_esp.pdf</a>
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> “...o aparente paradoxo entre os campos demanda ponderação cautelosa entre o combate à impunidade e todas as garantias processuais e direitos humanos do acusado. Afinal, “[e]l conflicto (...) nunca fue el de Derechos Humanos contra el Derecho Penal per se, pero sí con el abuso de este último”101. Também significa que a punição de indivíduos responsáveis por violações de direitos humanos não tem um valor meramente simbólico ou metafísico, mas, sim, cumpre uma função de reparar e prevenir futuras violações (conforme exposto supra, par. 19-28).” In: Pár. 49 do voto concorrente disponível em: <a href="https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_475_esp.pdf">https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_475_esp.pdf</a>
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> Pár. 111 do voto concorrente disponível em: <a href="https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_475_esp.pdf">https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_475_esp.pdf</a>
<a href="#_ftnref6" name="_ftn6">[6]</a> “En este sentido, la Corte estima conveniente ordenar que el Estado adecúe sus protocolos ya existentes o adopte nuevos protocolos que incorporen los estándares internacionales en la materia (supra párrs. 101 a 107) en las investigaciones y procesos penales derivados de actos de violencia sexual en perjuicio de niñas, niños y adolescentes; que aseguren que las declaraciones y entrevistas, los exámenes médico-forenses, así como las pericias psicológicas y/o psiquiátricas sean llevadas a cabo de forma ajustada a las necesidades de ese grupo particular de víctimas, y delimiten el contenido de la atención integral especializada para niñas, niños y adolescentes víctimas de violencia sexual. Por ello, la Corte ordena al Estado la adopción, implementación, supervisión y fiscalización apropiada de tres protocolos estandarizados, a saber: i) protocolo de investigación y actuación durante el proceso penal para casos de niñas, niños y adolescentes víctimas de violencia sexual; ii) protocolo sobre abordaje integral y valoración médico legal para casos de niñas, niños y adolescentes víctimas de violencia sexual, y iii) protocolo de atención integral para niñas, niños y adolescentes víctimas de violencia sexual.” Pár. 204 disponível em: <a href="https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_475_esp.pdf">https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_475_esp.pdf</a>
<a href="#_ftnref7" name="_ftn7">[7]</a> Pár 4 do voto concorrente disponível em: <a href="https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_475_esp.pdf">https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_475_esp.pdf</a>

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JOTA

Caso destaca a urgência de abordar episódios de violência sexual de maneira adequada, expedita e abrangente

A busca por justiça em Angulo Losada vs. Bolívia

Caso Angulo Losada vs. Bolívia destaca a urgência de abordar episódios de violência sexual de maneira adequada, expedita e abrangente