Opinião e Análise

Lígia Formenti

A Comissão de Constituição e Justiça do Senado se prepara para votar em 13 de setembro a <a href="https://www.jota.info/tributos-e-empresas/saude/entenda-a-pec-do-plasma-que-permite-a-coleta-e-venda-de-componente-do-sangue-06102023">PEC do Plasma</a>, uma proposta com potencial para <a href="https://www.jota.info/tributos-e-empresas/saude/senado-discute-pec-que-abre-brecha-para-comercializacao-de-sangue-29032023">mudar de forma radical a política de sangue e hemoderivados no país</a>. Apresentada no ano passado por um grupo de senadores, a PEC libera a comercialização de derivados do sangue, o que hoje é proibido pela Constituição Federal.
O argumento de parlamentares é de que a alteração ajudaria o país a reduzir a dependência de derivados de sangue e o desperdício de plasma coletado. Mais: seria um passo para que empresas pudessem produzir e pesquisar no país, dando maior segurança a um mercado que há anos se destaca pela turbulência. São inúmeros os episódios de escassez de produtos, além de denúncias de superfaturamento em compras ou desperdícios.
Essa esperança apresentada por defensores da proposta, no entanto, vem descolada de algo essencial: debate. Pouco se falou sobre quais seriam os reais impactos dessa mudança. Quais garantias de que haveria avanços e, mais ainda, quais os potenciais efeitos negativos.
Durante a tramitação, uma audiência pública foi feita. Os argumentos apresentados não foram suficientes para afastar a apreensão de parlamentares e de especialistas na área de hemoderivados. São vários os receios, a começar pelo impacto na doação de sangue. Duas tentativas de votação foram feitas, mas sem sucesso. E agora, ainda mesmo com inúmeras dúvidas, há possibilidade de que a proposta vá à votação.
O texto da relatora Daniella Ribeiro (PSD-PB) inicialmente previa a possibilidade de remuneração da coleta. Esse cenário já foi visto. Antes da Constituição Federal (e da proibição da participação da iniciativa privada), pessoas muitas vezes subnutridas se submetiam à coleta em busca de recursos, numa clara exploração de necessitados.
Diante das críticas, a senadora retirou o trecho que falava de remuneração. Substituiu por compensação. A alteração, no entanto, não foi considerada suficiente. O termo é vago, abre espaço para interpretações e não afasta, por si só, a exploração comercial.
Além da questão humanitária, a possibilidade de “compensação” poderia também trazer risco para doações. Aqueles que hoje avaliam que essa é uma medida altruísta poderiam alterar o comportamento, por achar que agora ele se confunde com comércio.
Há outro impacto expressivo. Documento do Ministério da Saúde afirma que a mudança, caso concretizada, afetaria o desenvolvimento tecnológico do país e colocaria em risco o investimento feito na Hemobrás.
A trajetória da estatal, criada em 2004 para garantir hemoderivados à população, está recheada de problemas. Atrasos em cronogramas, erros de planejamento e denúncias em contratos. E esse passado, em parte, coloca em risco seu futuro.  Diante das inúmeras falhas, há quem afirme não haver como depositar esperanças na estatal.
<h3>Cronograma</h3>
O Ministério da Saúde, no entanto, garante que a fábrica deve ser concluída em 2025 e, com isso, a dependência do mercado externo para hemoderivados irá diminuir de forma considerável. O investimento para instalação do parque foi de R$1,4 bilhão. Outros R$800 milhões estão previstos para serem investidos nos próximos dois anos, por meio do Novo PAC na ampliação da capacidade produtiva, nos hemocentros e núcleo de hemoterapia. De acordo com o secretário de Ciência, Tecnologia e Complexo Industrial da Saúde, Carlos Gadelha, a Hemobrás é estratégica para o SUS. A estimativa é de que o investimento gere R$400 milhões de economia anual ao SUS e geração de 2.600 empregos diretos e 8.000 indiretos.
O receio é que, se houver redução da oferta de plasma (provocada pela redução da doação), todo investimento seja perdido. Em relatório feito pelo Ministério da Saúde, o argumento é o de que a escala de produção é determinante para a produção em bases eficientes e sustentáveis.
Há quem garanta que os problemas da Hemobrás foram resolvidos e que, de fato, a promessa de que ela entrará em funcionamento finalmente será cumprida. Há duas apostas na Hemobrás: produção de hemoderivados recombinantes (essa etapa deverá ser a primeira a ser concluída) e, num segundo momento, no fim de 2025, a produção da imunoglobulina.
<h3>Produto caro</h3>
A imunoglobulina é usada para doenças imunológicas e também para tratamento de pacientes queimados e acidentados. Ao contrário de outros hemoderivados, ela somente pode ser obtida a partir do plasma humano. O preço desse hemoderivado é altíssimo. Uma grama custa em torno de US$ 80 a US$ 100. Para se ter uma ideia, cada litro de plasma contém aproximadamente 5 gramas de imunoglobulina.
Atualmente, a Hemobrás envia parte do plasma obtido nas doações para uma empresa contratada, no exterior. O processamento é feito e a imunoglobulina retorna para uso no país. Nessa operação, o governo paga pela realização do serviço. Mas isso não é suficiente. Parte da imunoglobulina é obtida por meio de compras públicas.
O Ministério da Saúde garante que, com o funcionamento da Hemobrás, haveria capacidade de processamento de 500 mil litros de plasma para processamento. Isso não seria suficiente para atender toda a demanda, mas traria uma boa segurança para atender parte delas.
O argumento usado por parlamentares que defendem a PEC é justamente esse. O Brasil está longe de ser autossuficiente e a iniciativa privada poderia participar com produção de imunoglobulina a partir de plasma coletado. Mas o problema é: não há garantias que isso de fato vai ocorrer.
Da forma como está, dizem os críticos, empresas poderiam simplesmente coletar o plasma e enviá-lo para o exterior para processamento, a exemplo do que já é feito na Hemobras. Mas o produto poderia não voltar. Ou, ainda, voltar a um preço considerado exorbitante, que somente poucos poderiam usar.
<h3>Jogando a toalha</h3>
Chama a atenção <a href="https://www.jota.info/tributos-e-empresas/saude/secretarios-sugerem-que-ministerio-da-saude-se-manifeste-contrariamente-a-pec-do-plasma-31082023">a postura do governo</a>. Embora a votação ainda nem tenha sido de fato iniciada, há quem afirme que a PEC tem tudo para ser aprovada. O líder do governo no Senado, Jaques Wagner (PT-BA), não escondeu seu empenho para romper as resistências do Ministério da Saúde. Para alguns observadores, a estratégia é feita para evitar atritos com o Centrão. Seria preciso ceder nesse ponto para garantir governabilidade.
Mesmo no Ministério da Saúde, a defesa em torno do tema é tímida. E já há quem fale em redução de danos. Criar estratégias para amarrar o texto, de forma a causar o mínimo de estrago possível na política de sangue.
O fato é que uma solução pensando apenas a curto prazo talvez desperdice uma oportunidade de se trazer um pouco mais de previsibilidade para a política de sangue no Brasil. É deixado de lado o empenho para se aperfeiçoar uma política pública de saúde para que outros interesses sejam atendidos.

Gay,doação de sangue.Curitiba,06/06/2017Foto:Venilton Küchler

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JOTA

Solução pensando apenas a curto prazo talvez desperdice uma oportunidade de se trazer um pouco mais de previsibilidade

Sem debate público, PEC do Plasma avança e traz incertezas para política de sangue

Solução pensando apenas a curto prazo talvez desperdice uma oportunidade de se trazer um pouco mais de previsibilidade