
Ministério da Saúde, representantes de associações de classe e parlamentares acertaram nesta terça-feira (14) os últimos detalhes da minuta da Medida Provisória para regulamentar a Emenda Constitucional 127, que libera uso de recursos de fundo para reduzir o impacto da criação do piso da enfermagem.
A proposta prevê que o dinheiro seja transferido a estados e municípios de acordo com o número de enfermeiros, técnicos e auxiliares de enfermagem e parteiros em atividade nos serviços públicos e conveniados que destinem pelo menos 60% de seu atendimento para o SUS. Seguindo esse raciocínio, estados e municípios com mais profissionais receberiam uma quantia maior.
Pela minuta, os recursos serão transferidos por fundo a fundo – um sistema já usado para fazer o pagamento de procedimentos, consultas e cirurgias para estados e municípios. “É um mecanismo sem surpresas, já testado”, afirmou à coluna a deputada federal Alice Portugal (PCdoB-BA). Nessa estratégia, além de recursos habituais, os entes receberão um pagamento extra, destinado justamente a custear a aplicação do piso da enfermagem.
Portugal, que acompanha de perto as negociações sobre o tema, afirmou que integrantes do ministério comprometeram-se a defender essa proposta no grupo interministerial encarregado de formular o texto final da Medida Provisória. Participam do grupo os ministérios da Fazenda e do Planejamento, a Casa Civil e a Secretaria de Relações Institucionais. A expectativa é que o texto da MP seja finalizado em poucos dias.
Contra o relógio
O cronograma apertado não é sem motivo. A pressão para a edição da medida provisória aumenta. Nesta terça, no mesmo dia da reunião realizada no ministério, enfermeiros realizaram protestos contra a demora para a entrada em vigor do piso salarial. Avisam que se uma solução não for encontrada, uma paralisação será feita em março.
A discussão se arrasta desde o ano passado. Em agosto, a lei fixando o piso nacional para enfermeiros, técnicos e auxiliares de enfermagem entrou em vigor, mas sem definir fontes de custeio para reduzir o impacto para serviços públicos e privados de saúde.
Diante da ausência de indicação de caminhos para custeio, uma Ação Direta de Inconstitucionalidade foi proposta no Supremo Tribunal Federal (STF) pela Confederação Nacional da Saúde, Hospitais e Estabelecimentos de Serviço.
O relator, ministro Luís Roberto Barroso, suspendeu em setembro a aplicação do piso e pediu esclarecimentos para avaliar o impacto nos gastos públicos e também o risco de demissões. Mais tarde, a decisão de Barroso foi confirmada pelo plenário do STF.
Reação
A Emenda Constitucional foi justamente uma resposta ao questionamento do Supremo. Promulgada em dezembro, a EC libera recursos de superávit financeiro de fundos públicos para reduzir o impacto. A emenda à Constituição, no entanto, não traz a forma do rateio. Sem o detalhamento, não há como saber quem receberá o recurso e a maneira como o dinheiro será encaminhado. E é justamente isso que a MP quer esclarecer.
“Assim que a MP for publicada, não haverá mais dúvidas. Tudo o que foi pedido pelo Supremo está lá”, avaliou a deputada. Estaria, portanto, aberto o terreno para a lei finalmente ser colocada em prática, disse Portugal.
Representantes do setor privado, no entanto, não entendem assim. Em inúmeras manifestações, afirmam que a EC 127, mesmo que regulamentada, não resolverá problemas. Entre argumentos estão: a liberação de recursos é temporária e atende apenas parte do setor.
A verba seria suficiente para custear o impacto por três anos. E, embora haja recursos para serviços que reservam 60% de atendimento para o SUS, boa parte dos estabelecimentos ficariam de fora. Sem compensação, não conseguiriam arcar com aumento dos custos.
Ouvidos pela coluna, os advogados Ana Carolina Caputo Bastos e Alexandre Bastos, que representam a CNSaúde na ADI, avaliam que os riscos à empregabilidade de enfermeiros não diminuem com a liberação dos recursos definidos pela ADI.
“As razões para a manutenção da liminar permanecem”, afirma a advogada Ana Carolina Caputo Bastos. O advogado Alexandre Bastos cita um parecer preparado pelos professores Luciano Timm e Thomas Conti que aponta que o maior empregador de enfermeiros é o setor privado. “A análise mostra que, em alguns locais, a aplicação do piso representará um aumento muito expressivo dos salários. Sobretudo em cidades do Nordeste e em serviços de menor porte”, completa Bastos. O parecer foi anexado à ADI.
Sem solução rápida
A reação do setor mostra que o impasse está longe de se resolver. Em seu discurso de posse, a ministra da Saúde, Nísia Trindade, falou sobre a urgência em encontrar a solução para o problema. Nesta terça, no mesmo dia em que enfermeiros faziam manifestações no país, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva afirmou, numa cerimônia na Bahia para a classe: “Vocês podem ter tranquilidade que vamos resolver os problemas de vocês”.
O governo sabe que caminha por um campo minado. De um lado, há a necessidade de se dar uma resposta à categoria profissional que durante a pandemia deixou clara, mais uma vez, a importância de seu papel. Já são seis meses que o grupo espera uma solução. Mas há outro ponto importante: o setor privado.
Em 2022, antes mesmo de a lei entrar em vigor, instituições iniciaram uma onda de demissões, uma espécie de sinalização do que estaria por vir. Além da ameaça do risco de demissões, um outro ponto precisa ser considerado: a pressão que retornará para o SUS. Insatisfeitos com a folha de pagamento e alegando aumento expressivo de custos, prestadores de serviços do SUS podem reforçar a pressão histórica para aumento dos valores repassados para consultas, exames e cirurgias.
Por fim, mesmo a proposta acertada nesta terça provoca algumas dúvidas. Se o critério para distribuição de recursos for o número de profissionais nas equipes, estados com melhor estrutura de atendimento serão beneficiados. E em muitos deles, os salários já são muito próximos dos valores definidos pelo piso da enfermagem.
Em outras palavras, além de não solucionar o problema, isso poderia aprofundar as desigualdades. Por fim, há outro fator. Há muito se fala que o país não sabe ao certo onde estão e quantos são os profissionais de saúde. O Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde, onde essas informações são registradas, apresenta falhas de informação. Como usar um registro cujos dados não são totalmente confiáveis?
Mesmo que a MP seja publicada, advogados da CNSaúde lembram que o texto, uma vez em vigor, terá de ser confirmado por parlamentares. A percepção é a de que, mesmo que publicada, a medida dificilmente traria elementos para convencer ministros do Supremo a mudar de avaliação e suspender a liminar.