
Elas não são protegidas contra violência, são privadas de informação de qualidade nas escolas que as auxiliariam a identificar o problema e enfrentam barreiras cada vez maiores para ter acesso a um direito previsto há mais de 80 anos, o aborto legal. Não há como traduzir a dimensão da tragédia a que essas meninas estão sujeitas. Mas estatísticas dão algumas pistas do abandono crescente.
Dados preliminares mostram que no ano passado a taxa de mortalidade materna entre meninas de 10 a 19 anos era de 62 a cada 100 mil nascidos vivos. Um aumento expressivo ante a taxa de 48 mortes por 100 mil nascidos vivos, identificada em 2018.
Professora da Universidade Federal de Minas Gerais, Fátima Marinho diz não ter dúvidas de que durante a pandemia houve aumento da violência domiciliar. Mas isso muitas vezes não é notificado. “Profissionais não são treinados, não têm incentivo para fazer registros. E o que vemos é um aumento dos nascimentos de bebês de mães que são ainda meninas. Outra consequência é o aumento das mortes maternas nessa faixa etária”, diz
O aborto é permitido quando há risco à saúde da mulher, quando a gravidez é resultante de estupro ou em casos de anencefalia do feto. Não é de hoje que as vítimas, qualquer que seja a idade, enfrentam dificuldades para ter acesso a esse direito. O número de serviços e de profissionais dispostos a realizar a técnica é limitado. Além disso, não é raro o médico alegar objeção de consciência para não fazer o procedimento, o que reduz ainda mais as alternativas de acesso.
Para completar, aumentam episódios de perseguição às vítimas. Como o caso da menina estuprada desde os seis anos por um tio e que engravidou aos dez. A busca pelo aborto veio a público e diante da pressão, a vítima precisou sair do seu estado, o Espírito Santo, para fazer o aborto em Pernambuco. Ou, ainda, do caso de Santa Catarina, em que a juíza coagiu a vítima a levar a gravidez em frente.
Os riscos da gravidez na adolescência são conhecidos. Mas o Ministério da Saúde, na mais recente versão da Nota Técnica sobre Abortamento questiona o fato, argumentando que outros aspectos devem ser levados em consideração. Essa abordagem apenas tumultua o já acidentado caminho que vítimas têm de percorrer para ter acesso ao aborto.
Outras barreiras já foram colocadas. Como a exigência da notificação do estupro. Numa versão anterior da nota, editada em junho, a equipe do Ministério da Saúde afirmava não haver aborto legal, provocando críticas entre especialistas. A nova versão retirou esse trecho, mas manteve outro entrave, que a limitação da realização do procedimento até a 22ª semana de gestação ou o peso do feto.
Em artigo publicado nesta quinta-feira (13/10) na Folha de S.Paulo, o secretário nacional de Atenção Primária à Saúde, Raphael Câmara, argumenta que o risco à vida pela idade “não é nem deve ser o único critério para indicação do aborto”. E, num raciocínio tortuoso, afirma que o direito da mulher deve ser preservado, mas sem que haja necessariamente a morte do bebê.
Esse discurso de apreço pela vida, no entanto, destoa quando se vê o abandono na assistência. Dados também reunidos pelo Ministério da Saúde mostram que, de janeiro a junho, foram registrados 6.218 nascimentos de bebês cujas mães eram crianças menores de 15 anos. Desse total, 204 deram à luz sem ter feito nenhuma consulta pré-natal. Outras 689 fizeram até 3 consultas. Desse grupo, 15 não fizeram nenhuma consulta e tiveram o bebê em casa. Números que retratam a falta grave de cuidado, que coloca em risco a vida da gestante.
Entre 15 a 19 anos, os dados também desanimam. Foram 131.190 nascimentos de bebês de mães nesta faixa etária. Desse total, 2.749 não fizeram nenhum acompanhamento pré-natal. E 144, além de nenhuma consulta, tiveram o bebê em casa. Gestações que passaram sem ser notadas, partos feitos sem amparo de pessoas treinadas para tal. Se a defesa da criança é prioridade, como diz o secretário, algo está faltando.