As ações de prevenção e controle de HIV/Aids fizeram com que o Brasil se tornasse referência mundial entre os anos 1990 e a primeira década deste século. O país foi pioneiro na oferta universal de medicamentos anti-retrovirais, os protocolos de terapias eram definidos com a participação dos principais especialistas da área, havia ousadia na condução das ações de prevenção, feitas muitas vezes em parceria com organizações não governamentais.
Com o passar dos anos, no entanto, o espaço dessa bem sucedida política foi minguando. Isso ocorreu porque o HIV/Aids havia deixado de ser um problema? Não. As estatísticas estão aí para comprovar que os números nunca foram confortáveis.
A retirada do HIV/Aids e Infecções Sexualmente Transmissíveis dos grandes temas de discussão de saúde no país foi motivada sobretudo por receio de desagradar alguns setores que tinham como prioridade a pauta de costumes.
As consequências foram danosas. Embora os recursos técnicos disponíveis para tratamento e prevenção tenham se ampliado de uma forma notável, os efeitos não foram sentidos na amplitude imaginada. A mortalidade por Aids cai numa velocidade muito aquém do desejável, casos novos são registrados e, nem mesmo a transmissão de mãe para filho foi resolvida. Além disso, Infecções Sexualmente Transmissíveis (ISTs) aumentaram.
Diante dessa situação, foi comemorada a notícia da criação de um departamento de HIV/Aids, Hepatites e Infecções Sexualmente Transmissíveis. A expectativa é de que o tema volte a ganhar visibilidade e, com isso, espaço para adoção de estratégias eficientes para prevenir e tratar o HIV e as ISTs.
“Em saúde, não há como se tapar o sol com a peneira. E isso que tentaram fazer com o HIV no Brasil”, afirma Carlos Duarte, integrante do Grupo de Apoio à Prevenção da Aids (Gapa) e integrante do conselho estadual de saúde do Rio Grande do Sul.
A criação de um departamento traz mais oportunidades para que ações possam ser desenvolvidas. Isso porque há maior autonomia e uma estrutura mais robusta para colocar em prática as políticas traçadas. Os desafios, no entanto, são grandes. Será preciso não apenas retomar campanhas de informação, mas melhorar o acesso a terapias e discutir incorporação de novas tecnologias.
HIV e Vacinas
A trajetória da política de prevenção e controle de HIV/Aids guarda certa semelhança com o programa de imunizações. Ambos foram internacionalmente reconhecidos e, apesar de todo conhecimento acumulado pelas equipes técnicas, foram duramente castigados nos últimos anos. No caso da vacina, as taxas de cobertura despencaram. No caso de HIV/Aids, as novas infecções persistem.
O tratamento dado às grávidas com HIV é um retrato do descaso e do consequente desamparo. A recomendação é de que gestantes façam o teste de HIV no pré-natal para adoção de medidas de profilaxia, capazes de evitar a transmissão para o bebê. São estratégias eficazes e que já fizeram com que pelo menos 30 cidades do país, incluindo São Paulo, zerassem a transmissão vertical. Mas não é o que se verifica. “Não há justificativa para ver casos ainda ocorrendo no restante do país”, afirmou ao JOTA o pesquisador da Universidade de São Paulo, Alexandre Grangeiro.
Há boas razões para afirmar que a assistência é falha.
Boletim de HIV/Aids divulgado em dezembro mostra que, em 2021, das gestantes com HIV, 14,6% não fizeram o uso de antiretrovirais durante o pré-natal, como é recomendado. Em 2012, o percentual era de 13%. Nesse período de tempo, o que se esperava era um avanço no acesso, seja por maior circulação da informação, seja por maior capacitação nos serviços. Uma queda como a que está estampada no boletim, por menor que seja, representa uma grande derrota.
Há ainda outros indicativos. O início da profilaxia com bebê (prescrição de medicamentos antiretrovirais) , que deve ter início nas primeiras 24 horas, piorou.
Em 2017, 60,2% dos bebês tiveram acesso ao tratamento. Em 2021, o percentual caiu para 50,5%. Ao mesmo tempo, a desinformação aumentou de forma expressiva. Em 2017, não havia informação sobre a assistência dada ao bebê em 32,7% dos casos. Em 2021, esse dado passou para 42,7%. “Conhecer apenas 50% do universo é conhecer nada, e isso demonstra uma outra grande falha”, observa Grangeiro.
O pesquisador critica também o fato de não haver regras para o uso de verbas de incentivo enviadas a municípios prioritários, aqueles com altas taxas de transmissão de HIV. “Esses locais recebem os recursos para enfrentamento do problema, mas o monitoramento foi extinto. Com isso, podem usar a quantia para outras finalidades, atrasando, dessa forma, uma ação mais efetiva para o real propósito, que é redução de novos casos de HIV-Aids.”
Outras infecções
O pesquisador também alerta para a necessidade de adotar estratégias mais eficientes para ISTs. O diagnóstico é fundamental, porque muitas não são sintomáticas. Além disso, novas gerações são menos expostas aos cuidados nas relações sexuais, aumentando assim o risco de exposição. “As ISTs no Brasil são envoltas em estigma, preconceito. Fazer com que um jovem com suspeita de infecção se convença a ir a um serviço de saúde demanda grande esforço. É preciso boa informação. Convencimento”, diz.
O contexto até agora era desfavorável, sobretudo pelo fato da resistência em se discutir nas escolas temas ligados à saúde sexual. “Houve uma inação do Ministério da Saúde, o assunto foi esquecido e o resultado é o que se vê: há uma geração de jovens que pouco sabem sobre prevenção, sobre ISTs. Quando problemas surgem, a última coisa que procuram é uma assistência médica”, afirma o pesquisador.
Novas ferramentas
A retirada do HIV-Aids da pauta também reduziu o acesso a estratégias como terapia pós exposição ou terapias pré-exposição ao HIV, que passam pelo uso de medicamentos antiretrovirais não para tratamento, mas prevenção da infecção.
Para o pesquisador, a terapia pós exposição é um recurso que funciona, mas uma ferramenta limitada quando se trata em saúde pública. Isso porque o acesso não é simples e, muitas vezes, oportunidades são perdidas. “Essa é uma estratégia que precisa ser revista”, opina.
No caso da terapia pré-exposição – feita por meio do uso de medicamentos antes de relações sexuais desprotegidas -, o acesso também é desigual. “A estratégia é indicada para populações mais expostas. Mas o acesso também não é uniforme. Acabam usando pessoas que vivem em regiões onde há uma estrutura melhor, por pessoas mais bem informadas e assistidas por profissionais mais bem treinados. Com tudo isso, a gente perde a oportunidade. Podíamos já ter uma redução mais expressiva de casos novos”, afirma.
Há outras tecnologias em que o país também patina. Como o uso da Prep injetável, considerada mais eficiente, em virtude da facilidade do uso. Sua aplicação é feita a cada dois meses. A expectativa é a de que, com o departamento, uma nova revisão da política de incorporação seja feita.
Grangeiro cita ainda o uso de anéis vaginais com antirretroviral, já usado em países onde a transmissão de mulheres é importante: “Talvez seja uma estratégia interessante para mulheres expostas ao HIV.” A empresa responsável pelo produto não se mostrou, até o momento, interessada em fazer o registro no país. “Será que não seria o caso de discutir produção local?”.
Tanto Grangeiro quanto Duarte afirmam que a resposta brasileira exigirá um esforço grande para ser atualizada. “É preciso também ver o aspecto social, a assistência que é dada às pessoas com Aids”, disse Duarte. Embora a necessidade de atualização seja grande, Grangeiro afirma que uma ação nos municípios prioritários, onde a doença se concentra, já traria efeitos importantes para redução de casos. “O HIV é uma doença urbana. Está concentrada em cidades com perfil definido”.