Quando Manaus vivia uma situação de caos por causa da explosão de casos de Covid-19, no início de 2021, a organização Médicos Sem Fronteiras (MSF) ofereceu auxílio. A ideia era atuar num hospital público da capital, reforçando o trabalho de assistência aos pacientes ou as atividades de logística. Nada mais urgente do que a chegada de profissionais de saúde num momento em que as equipes estavam desfalcadas e exaustas. Para colocar a cooperação em prática, no entanto, a organização precisou enfrentar uma extensa lista de afazeres. “Havia uma série de exigências burocráticas, validações e análises que demandavam um tempo precioso para aquele momento tão difícil”, recorda a gerente do MSF Vitória Ramos.
Os relatos de problemas enfrentados pelo MSF para prestar ajuda humanitária são inúmeros. Ao longo de dois anos de pandemia e de mais de duas dezenas de projetos desenvolvidos, a organização deparou-se com as exigências de tempos de normalidade.
A chegada de médicos estrangeiros para trabalhar no país enfrentava um processo minucioso de avaliação. Ao desembarcar no país, esses profissionais não podiam atuar na assistência, uma vez que o exercício da profissão exige uma validação do diploma. A alternativa era a de que eles atuassem em atividades de supervisão ou logística. A colaboração de profissionais brasileiros também não estava livre de obstáculos. Para atuar em outro estado, era indispensável a autorização dos conselhos de classe. “Se um profissional chegasse numa sexta, por exemplo, era necessário aguardar todo o fim de semana para que o processo de permissão fosse iniciado”, diz Vitória.
Mesmo para a compra de medicamentos e insumos de saúde havia barreiras importantes. Regras para garantir a qualidade de produtos que chegam ao país e qualidade de profissionais que vão prestar socorro à população são indispensáveis. Mas a questão é: nos momentos de emergência não seria necessário ter um protocolo mais simples? Para a vice-diretora do Médicos Sem Fronteiras no Brasil, Renata Reis, é urgente aprofundar o debate sobre como ter uma resposta mais ágil nos momentos de crise.
A experiência vem demonstrando o quanto o país necessita de um sistema eficiente para atender emergências. Chuvas como as que assolaram o sul da Bahia no fim de 2021 e que mataram ao menos 238 pessoas em Petrópolis (RJ) neste ano, sem falar na própria Covid-19, são exemplos mais recentes. E a tendência é a de que, com o aquecimento global, aumente o risco de novos desastres ambientais.
A forma de como ter uma resposta coordenada, rápida e ao mesmo tempo segura, no entanto, ainda precisa ser desenvolvida. Neste processo, vários pontos merecem atenção. A agilidade para ajuda humanitária não pode abrir espaço para quem não tenha em mente o socorro de pessoas necessitadas. No caso da compra de produtos de saúde, mais ainda: é preciso afastar o risco de as regras serem transformadas numa porta de entrada para produtos duvidosos, de baixa qualidade ou que estariam prestes a ser descartados em outros países.
Embora os riscos não possam ser desconsiderados, as dificuldades para prestar assistência também não. O MSF iniciou um movimento para buscar alternativas. Um grupo de advogados atua gratuitamente para propor regras para momentos de dificuldades. “Diante dos entraves que constatamos, achamos que o debate precisa ser feito agora. Não dá para esperar mais. É preciso um marco legal para a atuação dos grupos humanitários no momento de crise. Não queremos regras frouxas. O mundo farmacêutico, por exemplo, tem de ser regulado, sempre. Mas não há, nesse momento, regulação para nós”, afirma Renata.
A ideia é promover um debate no país com instituições, juristas, conselhos de classe, representantes de governo e parlamentares de todas as matizes para se chegar a uma agenda concreta. As resistências que serão encontradas pelo grupo serão inúmeras. E parte dos receios, procedentes, daí a necessidade do debate. De qualquer forma, em algum momento isso há de começar. Difícil conseguir entender, por exemplo, como dificultar a chegada de profissionais que poderiam representar um alívio para equipes de saúde ou uma assistência mais rápida para pacientes que necessitam de atendimento urgente.