
A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) alcançou ao longo do período mais difícil da pandemia de Covid-19 um protagonismo incomum para agências reguladoras. Na expectativa de ver aprovada uma vacina contra a doença, muitos acompanharam de perto os trabalhos realizados pela equipe técnica da autarquia. Depois, foi a vez do bem-sucedido pacote de medidas para tentar reduzir as dificuldades no abastecimento de medicamentos usados em pacientes infectados pelo vírus e que precisavam de respiradores, a liberação da vacina para público infantil e a análise dos autotestes.
Desde meados de maio, no entanto, a agência não realiza reuniões ordinárias da diretoria colegiada. A mudança no calendário, acompanhada de perto por representantes do setor, é em parte atribuída ao mal-estar na cúpula da Anvisa, que teve como ponto de partida declarações da diretora Cristiane Jourdan.
Médica e advogada, Jourdan assumiu o posto sob as bênçãos da família Bolsonaro para um mandato que terminaria em julho deste ano. A diretora, no entanto, passou a questionar esse prazo ao ver frustrada sua tentativa de ser reconduzida ao cargo. Em maio, fez duras críticas à condução de alguns temas considerados importantes pela agência e citou interferência política nas decisões. Dois dos temas a que a diretora fez referência estavam sob sua responsabilidade: a regulação de cigarros eletrônicos e a reavaliação do agrotóxico Carbendazim.
Desde então, reuniões que estavam previstas no calendário foram suspensas. As atividades da Anvisa continuam, mas é inegável a necessidade da realização das reuniões colegiadas, um espaço em que resoluções são aprovadas e discutidas e processos são julgados.
A polêmica em torno do Carbendazim surgiu neste ano. Numa reunião realizada no fim de abril, Jourdan recomendou o banimento do produto. Foi voto vencido. Demais diretores consideraram essencial ouvir representantes de outras instituições, como Ministério da Agricultura, Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Renováveis (Ibama) e a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa).
Uma providência que Jourdan classificou como desnecessária. “Ouvir outras entidades apenas posterga uma decisão relevante para saúde pública”, disse, na ocasião.
Entre técnicos da agência, no entanto, a interpretação era outra. A reavaliação do agrotóxico, que estudos indicam ter efeitos carcinogênicos e toxicidade para seres humanos, começou a ser feita na agência em 2019. O tema, no entanto, ficou praticamente intocado até fevereiro, quando a discussão foi incluída na pauta da diretoria colegiada.
A pressa repentina demonstrada por Jourdan para tratar do tema provocou estranheza. Mas, mais do que isso, preocupação. O receio era que o processo, feito sem observar regras de procedimento, pudesse mais adiante ser questionado na Justiça. Um dos pontos importantes, na avaliação dos diretores, era ouvir demais atores que atuam na área de agrotóxicos, como o Ministério da Agricultura e o Ibama. Era preferível, argumentavam, postergar a decisão em um mês ou dois e evitar riscos de retrocessos no futuro. Foi depois deste revés que Jourdan engrossou as críticas, que já vinha fazendo, e passou a mirar também nos diretores. Segundo relatos, ela se considera isolada.
Depois das críticas públicas feitas por Jourdan, as reuniões foram aos poucos sendo adiadas ou suspensas. A expectativa era que os ânimos se acalmassem e não houvesse mais críticas ou discussões desgastantes em praça pública.
Na semana passada, no entanto, a discussão ganhou mais um ingrediente. Uma decisão da Justiça fixou prazo de 60 dias para que a reavaliação da Anvisa fosse realizada. Diante da determinação, uma reunião extraordinária foi realizada na tarde desta terça-feira (21).
A diretora Meiruze Freitas, que substituía na ocasião o diretor-presidente da Anvisa, Antonio Barra Torres, fez uma inversão da pauta e colocou em votação a suspensão cautelar da importação, produção, distribuição e comercialização do Carbendazim e seus produtos técnicos. A suspensão, que atenderia o princípio da precaução, teria validade até que a reavaliação definitiva sobre o agrotóxico fosse realizada.
Relatora do caso, Jourdan criticou a proposta e, em forma de protesto, retirou-se da reunião. Ela não chegou a ler seu voto, mas disse que sua proposta era melhor do que a que havia sido apresentada até aquele momento.
Ainda diante do mal-estar, diretores votaram um cronograma para a condução da reavaliação do agrotóxico, que inclui uma consulta pública. Mesmo ausente, Jourdan foi sorteada para analisar as contribuições da consulta pública.
No voto apresentado por Meiruze Freitas, são descritos aspectos que levaram a uma demora na avaliação. A diretora menciona o fato de o tema da reavaliação não ter sido pauta de reuniões internas até fevereiro deste ano. E observa que os pedidos de informações feitos a outros órgãos de governo, como foi estabelecido na reunião de abril, foram feitos quase um mês depois da decisão da diretoria colegiada.
“A delonga no atendimento das deliberações da Dicol na sétima ROP tornou-se um agravante frente à decisão judicial, pois, até o momento, não constam nos autos contribuições dos órgãos partícipes na reavaliação desse agrotóxico e, tampouco, publicação e contribuições”, diz o voto.
Os desdobramentos da reunião desta terça-feira vão além da avaliação da comercialização do agrotóxico no país. Em meio ao mal-estar, a reunião ordinária da diretoria colegiada marcada para esta quarta-feira (22) foi desmarcada. Na pauta figuravam em sua maioria temas relatados pela diretora Jourdan. Demais diretores retiraram temas que estavam sob sua relatoria justamente para dar espaço para análise dos pontos sob responsabilidade de Jourdan.
Resta saber até quando os encontros serão suspensos. Integrantes da Anvisa afirmam que, uma vez retomada a calma, reuniões extraordinárias poderão ser organizadas, num esforço para organizar o tempo perdido. Há, no entanto, uma série de pontos da agenda regulatória aguardando avaliações.