Um dos argumentos mais usados por agências reguladoras para justificar a flexibilização de suas regras é o amadurecimento do mercado. Quanto mais responsáveis são os integrantes do setor regulado, dizem, mais genérica pode ser a regulação.
Em setembro, a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) colocou em consulta pública um pacote de medidas para simplificar a regulação prudencial, regras criadas em 2001 para dar segurança a prestadores e beneficiários de planos de saúde.
A lógica dessas provisões é simples. Em caso de aperto nas contas das empresas de saúde suplementar, há uma espécie de “poupança” a que se pode recorrer para garantir que os compromissos sejam honrados.
Ao longo dos últimos anos, bilhões de reais foram depositados nesses fundos de socorro, que também trazem rendimentos.
Ao anunciar em setembro a consulta pública para mudança das regras da regulação prudencial, a ANS deu o recado. É preciso dar segurança ao mercado, mas as exigências precisam ser na dose certa, de forma a não deixar operadoras com a corda no pescoço. E nesse ajuste integrantes da agência concluíram que sim, é possível reduzir as exigências, sem que isso traga prejuízo para consumidores e prestadores. Um progresso, avaliaram os diretores.
As medidas anunciadas na reunião de setembro vieram em boa hora para as empresas, que se queixavam de dificuldades nas contas, reflexo sobretudo do aumento das despesas com assistência de pacientes.
Dados da ANS divulgados semana passada indicam que o setor registrou um resultado líquido negativo de R$ 2,5 bilhões, entre janeiro e setembro deste ano, especialmente entre operadoras de maior porte.
O aperto é atribuído a uma mudança no padrão do uso de planos de saúde. Pessoas estão fazendo mais exames, mais consultas, talvez colocando em dia tratamentos que foram adiados durante o período mais duro da pandemia.
A sinistralidade, a proporção entre o que é arrecadado pelas empresas que é gasto com serviços de saúde, tem média de 84,5% nos últimos doze meses. No período pré-pandemia, estava em 80% e 82%.
A dúvida, no entanto, é se essa tendência de aumento de gastos e demandas por serviços por parte dos consumidores é temporária ou se veio para ficar.
De acordo com a agência, a mudança nos critérios anunciados em setembro evitou que muitas das agências fossem colocadas em direção fiscal. Com uma das medidas, a extinção da margem de solvência, a previsão é de que as operadoras fiquem livres de aportar R$ 11,8 bilhões em garantias.
Mas as providências apresentadas pela ANS foram recebidas de forma morna para o setor. E, embora mal tenha saído do papel, e, portanto, seu impacto real ainda não possa ser mensurado, iniciou-se uma pressão para que o socorro fosse ampliado.
Os apelos sensibilizaram uma parte da agência, que estuda agora uma nova medida. Permitir que parte dessas provisões técnicas sejam usadas para pagar prestadores de serviços. É como se o dinheiro do fim do mês não fosse suficiente e você usasse uma parte da poupança para pagar o supermercado.
Questionada, a ANS afirma que a ideia é ainda preliminar. A Associação Brasileira de Planos de Saúde (Abramge) não se manifestou, alegando não conhecer a proposta. A FenaSaúde, por sua vez, em nota disse apoiar a medida. A entidade argumentou que o setor vive um momento desafiador, com elevação de custos assistenciais e que a função das reservas técnicas é justamente o seu uso em momentos excepcionais, como o atual.
Mas a discussão, mesmo que inicial, provoca críticas entre os técnicos da agência. Os questionamentos são vários. Como proceder, por exemplo, com cooperativas? E num mercado verticalizado, onde a própria empresa é controladora de prestadoras de serviços, como hospitais? É possível tirar recursos de um ativo garantidor para pagar o próprio grupo? E qual valor dos procedimentos, nesses casos? Não há riscos de que tabelas sejam infladas somente para retirar recursos bloqueados e distribuí-los no próprio grupo?
Mas a principal dúvida é: se aos primeiros sinais de dificuldade a agência afrouxa as regras, como garantir a maturidade do setor?
Sim, argumentam, a situação hoje não é boa. Mas dados da ANS mostram que entre o primeiro trimestre de 2020 e primeiro trimestre de 2021 o resultado líquido do setor apresentou um expressivo aumento. E, continuam esses técnicos já se sabia que, mais cedo ou mais tarde, haveria o efeito rebote: um aumento da sinistralidade e, portanto, dos custos. Por que as empresas não fizeram provisões? Mas o mais importante: por que a própria ANS não se atentou ao risco futuro e não aumentou as exigências, mesmo que de forma temporária?
Especialista em regulação econômica, o servidor público Pedro Paulo Salles Dias Filho observa que quanto menor a sinistralidade, menos recursos as operadoras têm de aportar. “Isso ocorreu na pandemia. Lucros aumentaram, foram repartidos entre os sócios. Mas será que o certo não teria sido aumentar as reservas?”, perguntou. “Agora, num momento de maior dificuldade, de maior risco, brechas seriam abertas e reservas, liberadas. Não é uma contradição. Consumidores não ficariam mais expostos?”
Diretor executivo da Associação Nacional de Hospitais Privados (Anahp), Antonio Britto avalia que uma eventual liberação do uso de recursos de fundos garantidores para pagar prestadores pode ser uma solução paliativa, para amenizar um problema mais agudo, atual. “Seria uma medida emergencial. Mas é preciso se pensar no problema estrutural”, completa. Britto observa que há tempos o mercado mostra sinais de mudança. “A maior parte do mercado é formada por contratos coletivos. Com a mudança da relação de trabalho e crescimento da informalidade, os contratos empresariais diminuíram”, disse.
Permanecem no mercado um grupo cada vez menor que ainda tem planos empresariais. Ou, ainda os que buscam planos de adesão, pessoas que sabem que o gasto no fim do mês com a parcela não é luxo, mas necessidade. Um grupo geralmente de faixas etárias mais elevadas ou com situação de saúde mais delicada. Com isso, o mutualismo, um dos alicerces da saúde suplementar, se perde.
“Há ainda o desperdício, profissionais de saúde inseguros, muitas vezes mal formados, que se amparam numa quantidade exagerada de exames para fazer diagnóstico e definir tratamento.” Para Britto, esse panorama mostra a necessidade de se pensar em soluções a médio prazo, que incluam investimentos em ações de promoção da saúde, atenção primária, redução de desperdício e novas lógicas de pagamento.
Dias Filho, resume: “É preciso olhar os problemas, buscar soluções inovadoras, que pensem a médio prazo.”
Para técnicos da ANS ouvidos, o fato é que, se a agência sempre afrouxar regras ao menor sinal de dificuldade, o mercado nunca vai amadurecer. Mais ainda: se uma nova crise de saúde ocorrer, o erro irá se repetir. E assim o mercado se fragiliza e consumidores ficam mais expostos.