Uma pesquisa coordenada pelo professor da Faculdade de Medicina da Santa Casa José Cassio de Moraes sobre a cobertura vacinal de crianças nascidas entre 2017 e 2018 mostra que o país está diante de uma bomba-relógio.
Não é de hoje que especialistas alertam para a baixa cobertura vacinal. Mas a análise do inquérito, feito a partir de dados de 38 mil crianças e quase 450 mil visitas em todas as capitais do país, Distrito Federal e em 12 municípios com mais de 180 mil habitantes, deixa claro que o problema cresce de forma expressiva e que somente será reduzido com diferentes estratégias para driblar desinformação e dificuldades de acesso.
O levantamento traz em números as barreiras enfrentadas pela população para vacinar as crianças. Três em cada 10 entrevistados disseram que já passaram pela experiência de levar a criança para o posto de vacinação e voltar para casa com a caderneta intocada.
Os motivos são vários. De longe, o mais comum é a falta de vacina. No inquérito, 44% relataram que não vacinaram seus filhos por falta de imunizante. Em seguida, sala da vacina fechada (10,8%), falta de recomendação do profissional de saúde e falta de material para aplicar a vacina.
“O Programa Nacional de Imunizações sempre foi considerado modelo, uma prioridade. Mas hoje, ele não é mais prioridade de fato”, constata o coordenador do inquérito.
Moraes considera urgente encontrar soluções para evitar que a criança volte para casa sem ser vacinada. “Ao chegar no posto, o pai e a mãe escutam que não é dia da vacina, que a senha acabou, que o posto está prestes a fechar. Para quem mora longe do posto, para quem perdeu o dia de trabalho ou gastou dinheiro da condução é um problema grande. Muitos não voltam.”
O problema ganha dimensões ainda maiores quando se leva em conta que o inquérito foi feito a partir da análise das carteiras de vacinação de crianças de até dois anos.
Os primeiros anos de vida são fundamentais também para que pais e mães fortaleçam a convicção da importância da vacina. Tornem isso um hábito. Ao perder a primeira e a segunda dose, maior o risco de todo o esquema vacinal ficar em atraso.
Mais ainda: quando o próprio funcionário do posto diz para o pai e a mãe voltarem com a criança em outro dia, a mensagem que fica é a de que a vacina pode ficar para depois. Não é urgente. Daí a cair no esquecimento é um passo.
Gestores municipais alegam trabalhar pressionados. Órgãos de controle frequentemente questionam perda de doses de vacina. Receosos de cobranças, muitos passaram a recomendar à equipe dos postos, por exemplo, evitar abrir um frasco com muitas doses de vacina no fim do dia. “Essa é uma questão, mas soluções precisam ser encontradas”, diz o professor da Santa Casa.
Dificuldade de acesso é um problema importante. Mas não único. Um outro dado preocupante revelado pelo inquérito é o aumento da resistência de classe economicamente mais favorecida e com alta escolaridade de vacinar seus filhos.
Em 2005, o problema também estava presente. O inquérito feito naquele ano mostrava que 76% das crianças de até 2 anos da faixa econômica mais alta haviam completado o esquema vacinal. Era o pior desempenho dos cinco estratos econômicos e abaixo da média nacional, que era de 81%.
Entre crianças nascidas em 2017 e 2018, a diferença se ampliou. Na faixa econômica com maior poder aquisitivo (e também, com maior escolaridade), 35% das crianças de até dois anos haviam completado o esquema vacinal. A média da amostra nacional da pesquisa é de 59%.
“Fica claro que o grupo de maior poder aquisitivo não está recebendo informações necessárias. Ou ainda, recebe informações com problemas”, afirmou o professor. Entre crianças com mães de formação universitária, 52% estão com a cobertura completa. “Esse é um dado encontrado também em outros países, mas não deixa de ser preocupante.”
Uma das maiores apreensões é o risco de reintrodução da poliomielite. “A queda de cobertura da vacina contra pólio foi de 12% no período”, disse. Não é à toa que hoje o Brasil é considerado um país de alto risco.
Diretor da Sociedade Brasileira de Imunizações, Renato Kfouri observa que o inquérito coordenado por Moraes afasta em parte a hipótese de que a baixa cobertura vacinal é fruto do atraso de alimentação dos dados do sistema oficial de controle.
“Ao longo dos anos, houve uma mudança na forma de informação, que agora passa a contar também com dados da pessoa vacinada. Isso é ótimo, porque permite verificar as taxas de abandono e adotar medidas mais pontuais.” Mas a mudança trouxe algumas dificuldades de adaptação para municípios, sobretudo para cidades onde o acesso à internet é precário.
Por essa razão, partes dos gestores, quando questionados, atribuem os baixos indicadores vacinais em parte ao atraso no preenchimento das informações. “Mas o inquérito mostra que os números são muito semelhantes”, diz Kfouri.
Durante o trabalho, os pesquisadores, além de entrevistar pais, analisaram as carteiras vacinais das crianças. Para Kfouri, o inquérito reforça a necessidade de se melhorar a forma de comunicação com pais e mães. Deixar claro que a vacina é de fato necessária, independentemente do número de casos da doença. “É preciso ter empatia, clareza nas informações”, observa ele.
Kfouri afirma não estranhar, por exemplo, a baixa adesão à campanha de vacinação. Para ele, o modelo não é o ideal, sem falar que a forma de mobilização foi falha. O diretor da SBIm avalia que, além de aprimorar a comunicação, seria importante manter condicionantes em programas de transferência de renda, diz.